Existe no homem um vazio do tamanho de Deus.
Dostoiévski
Não fui sempre assim. Tive pai, mãe, irmãos. Todos por aí. Por esse mundão de meu Deus. Se eu acredito em Deus? Deus, pra mim, é uma jóia. O resto é bijuteria. O que eu acho dos homens? Tem gente boa por aí. Mas sou sozinho. Já tive, é verdade, a Lurdes. Mas não quero pensar nela. Preciso catar lixo – o que os outros desprezam é ouro pra mim. O senhor acha que eu não estudei? Estudei, sim, senhor. Os professores viviam até me dizendo que eu nunca seria alguém na vida. Acho que eles tinham razão. Não sou nada. Sou invisível. As pessoas nem me enxergam. Julgam que eu não existo. Nem um bom dia eu ganho, sabia? De ninguém. Nem mesmo do senhor. O senhor não reparou, não? Chegou aí, não falou nada e foi logo tirando fotografias. Pra que, aliás, essas fotos? São pra algum concurso, são? Aí o senhor coloca as fotos numa moldura, pendura numa parede toda branca, chama a imprensa, serve um vinho e coisa e tal. Com isso, o senhor acha que tá fazendo a sua parte; que tá denunciando as desigualdades sociais; que tá ajudando a fazer um mundo mais humano. Não é assim que o senhor pensa? Mas as pessoas não têm sensibilidade para mudar o mundo. Apenas veem TV e choram com as novelas. Nada mais. E a realidade? Continua sendo uma luta desigual. As pessoas se fecham em casa – cadeados, correntes, câmeras, cercas, muros... Todos acham que podem se proteger do outro. Mas ninguém tá protegido, não, meu senhor. Eu mesmo tenho medo. O senhor se assusta? Pois é. Sim, tenho medo. Moro na rua. E sempre tem alguém querendo fazer alguma maldade. Gente igual a mim. O senhor entende, não entende? É tudo igual. Rico. Pobre. Todos querem é mandar no outro, no seu semelhante. Eu não quero mandar em ninguém. Quero apenas catar lixo. Viver em paz. Engraçado, eu falei viver em paz. E lá eu sei o que é viver paz? Nunca soube. Meu pai foi embora quando eu tinha nove anos. Minha mãe sustentou a gente como pôde. Não foi puta. É isso o que o senhor tá pensando? Puta não foi, não, meu senhor. Lavava pra fora. Vivia com dores nas costas. Aquelas trouxas de roupa na cabeça. Era uma mulher nova. Não lembro a idade. Mas era nova. Acho que se cansou daquela vida, se perdeu nas drogas. Meus irmãos e eu ficamos sozinhos. Cada um pro seu lado. Arranjei um emprego de ajudante numa transportadora. E passei a morar num quartinho nos fundos da empresa. Foi aí que conheci a Lurdes. Mas não quero falar dela. O senhor tem fogo? O senhor não fuma? Eu queria parar. Mas sempre acho uma xepa no chão. Daí eu fumo. Beber? Não bebo, não, meu senhor. Preciso estar desembriagado. O mundo de noite fica ainda mais perigoso. Às vezes, tem briga. Não quero briga. Mas sou bom lutador. A Lurdes sabia disso. Quem foi a Lurdes? Deixa pra lá. O que o senhor quer aqui? Fotos? Tem tanta coisa linda nessa vida, meu senhor. Por que uma foto minha? O senhor fica calado. Tem vergonha? Vergonha de ter roupa boa, casa, mulher, filhos... Tudo limpinho. Tudo cheirosinho. Tudo arrumadinho. O senhor é igual aos outros, né? Ninguém liga pra mim. Quem se importa comigo? Nem a Lurdes se preocupou. A Lurdes? O senhor insiste. Quer saber da Lurdes, né? Bem, o que eu posso dizer pro senhor? Amei aquela mulher. Tava sem ninguém. Acho que com saudade da minha mãe. Carente. O senhor entende, não entende? Não sei. E a Lurdes apareceu. Os olhos grandão e pretos e brilhantes. Pareciam um par de jabuticabas. Os cabelos longos e cheirosos e macios. A Lurdes... Fez cafuné. Fez carinho. Fez amor. Prometeu amor pra sempre. E não é que eu acreditei? Fiquei feliz, muito feliz. E nem ligava o dinheiro contadinho, contadinho. Felicidade não é dinheiro, meu senhor. Felicidade é... O senhor sabe, não sabe? Aluguei, então, um barraquinho e coloquei a Lurdes dentro. Lurdes fazia faxina. Lurdes lavava a roupa. Lurdes fazia o almoço. Lurdes fazia amor – era boa nisso. Lurdes até rezava! Aí um dia... Não gosto de lembrar. Mas o senhor quer saber a minha história, não quer? Pois, então, continuo. Eu saí cedo de casa. Era inverno. Havia uma neblina baixa. Tentei atravessar a rua. Me disseram que o motorista nem freou. Ele tava bêbado. E eu fui arremessado pra longe. Bati com a cabeça no asfalto. Fiquei desacordado. Três semanas. Acordei. Perguntei pela Lurdes. Ninguém procurou pelo senhor – o médico falou. Quis me levantar. O corpo todo doía. Fiquei uns três meses no hospital. E nenhum sinal da Lurdes. Tive alta. A cabeça cheinha de dúvidas. E fui logo procurar a Lurdes, a nossa casinha, o nosso lar. Perto do nosso barraco... O senhor me desculpe, mas eu ainda choro. Não queria lembrar. Mas agora que comecei, vou contar tudinho – tim-tim por tim-tim. Cheguei perto do barraco e vi a minha Lurdes. Ela vinha vindo agarrada com outro homem. Parecia feliz. Eu não aguentei. Pulei em cima do safado. Bati muito – ah, como eu bati! Tava com ódio. Tava com a morte no olhar. Tava com o peito... E a Lurdes? Gritava. Pedia socorro. Me chamava de monstro. Dizia que eu tava matando o seu homem. Ouvi isso. Parei. Olhei pra Lurdes. Meu coração ficou pedra. Fui embora. Sem rumo. Sem sentido. Pra onde? Vaguei. O corpo cansado. A alma pesada. Tristeza. Precisava dormir. A dor não deixava. Eu só bebia cachaça. Nem fome tinha. Parei debaixo de uma marquise. A chuva. O frio. A solidão. E perdi o prumo, o norte. Desacordei. Quanto tempo? Não sei. Acordei. Demorei a entender a realidade. Pensei em suicídio. Mas eu já não tava morto? Não era mais homem, não, meu senhor. Foi isso. Não quero mais falar. O senhor tá achando pouca coisa? Pode ser, pode ser. Mas não dá pra mudar o passado; o destino que a gente mesmo fabricou. Pensando bem, essas fotos podem até me ajudar. Quem sabe a Lurdes vê as fotos e acha que eu virei alguém na vida? Sei que é ilusão. Mas o que não é mentira nesse mundo de meu Deus? O senhor sabe, não sabe? O senhor já sofreu por amor? Não quer responder. Sei, eu entendo. Somos iguais, meu senhor. Somos gente. A diferença é que eu moro na rua. Isso pode acontecer com qualquer um. A Lurdes não disse que tinha amor pra sempre? Por que ela mentiu pra mim? O senhor não sabe responder? O senhor já vai? Também vou indo. O saco ainda tá vazio. Preciso catar lixo. Quanto mais entulho, melhor. É assim que tento esquecer a Lurdes. Por que tudo foi tão difícil pra mim? O senhor não sabe, sabe? Não tenho mais a Lurdes. Tenho só o meu corpo – o lixo.
Dostoiévski
Não fui sempre assim. Tive pai, mãe, irmãos. Todos por aí. Por esse mundão de meu Deus. Se eu acredito em Deus? Deus, pra mim, é uma jóia. O resto é bijuteria. O que eu acho dos homens? Tem gente boa por aí. Mas sou sozinho. Já tive, é verdade, a Lurdes. Mas não quero pensar nela. Preciso catar lixo – o que os outros desprezam é ouro pra mim. O senhor acha que eu não estudei? Estudei, sim, senhor. Os professores viviam até me dizendo que eu nunca seria alguém na vida. Acho que eles tinham razão. Não sou nada. Sou invisível. As pessoas nem me enxergam. Julgam que eu não existo. Nem um bom dia eu ganho, sabia? De ninguém. Nem mesmo do senhor. O senhor não reparou, não? Chegou aí, não falou nada e foi logo tirando fotografias. Pra que, aliás, essas fotos? São pra algum concurso, são? Aí o senhor coloca as fotos numa moldura, pendura numa parede toda branca, chama a imprensa, serve um vinho e coisa e tal. Com isso, o senhor acha que tá fazendo a sua parte; que tá denunciando as desigualdades sociais; que tá ajudando a fazer um mundo mais humano. Não é assim que o senhor pensa? Mas as pessoas não têm sensibilidade para mudar o mundo. Apenas veem TV e choram com as novelas. Nada mais. E a realidade? Continua sendo uma luta desigual. As pessoas se fecham em casa – cadeados, correntes, câmeras, cercas, muros... Todos acham que podem se proteger do outro. Mas ninguém tá protegido, não, meu senhor. Eu mesmo tenho medo. O senhor se assusta? Pois é. Sim, tenho medo. Moro na rua. E sempre tem alguém querendo fazer alguma maldade. Gente igual a mim. O senhor entende, não entende? É tudo igual. Rico. Pobre. Todos querem é mandar no outro, no seu semelhante. Eu não quero mandar em ninguém. Quero apenas catar lixo. Viver em paz. Engraçado, eu falei viver em paz. E lá eu sei o que é viver paz? Nunca soube. Meu pai foi embora quando eu tinha nove anos. Minha mãe sustentou a gente como pôde. Não foi puta. É isso o que o senhor tá pensando? Puta não foi, não, meu senhor. Lavava pra fora. Vivia com dores nas costas. Aquelas trouxas de roupa na cabeça. Era uma mulher nova. Não lembro a idade. Mas era nova. Acho que se cansou daquela vida, se perdeu nas drogas. Meus irmãos e eu ficamos sozinhos. Cada um pro seu lado. Arranjei um emprego de ajudante numa transportadora. E passei a morar num quartinho nos fundos da empresa. Foi aí que conheci a Lurdes. Mas não quero falar dela. O senhor tem fogo? O senhor não fuma? Eu queria parar. Mas sempre acho uma xepa no chão. Daí eu fumo. Beber? Não bebo, não, meu senhor. Preciso estar desembriagado. O mundo de noite fica ainda mais perigoso. Às vezes, tem briga. Não quero briga. Mas sou bom lutador. A Lurdes sabia disso. Quem foi a Lurdes? Deixa pra lá. O que o senhor quer aqui? Fotos? Tem tanta coisa linda nessa vida, meu senhor. Por que uma foto minha? O senhor fica calado. Tem vergonha? Vergonha de ter roupa boa, casa, mulher, filhos... Tudo limpinho. Tudo cheirosinho. Tudo arrumadinho. O senhor é igual aos outros, né? Ninguém liga pra mim. Quem se importa comigo? Nem a Lurdes se preocupou. A Lurdes? O senhor insiste. Quer saber da Lurdes, né? Bem, o que eu posso dizer pro senhor? Amei aquela mulher. Tava sem ninguém. Acho que com saudade da minha mãe. Carente. O senhor entende, não entende? Não sei. E a Lurdes apareceu. Os olhos grandão e pretos e brilhantes. Pareciam um par de jabuticabas. Os cabelos longos e cheirosos e macios. A Lurdes... Fez cafuné. Fez carinho. Fez amor. Prometeu amor pra sempre. E não é que eu acreditei? Fiquei feliz, muito feliz. E nem ligava o dinheiro contadinho, contadinho. Felicidade não é dinheiro, meu senhor. Felicidade é... O senhor sabe, não sabe? Aluguei, então, um barraquinho e coloquei a Lurdes dentro. Lurdes fazia faxina. Lurdes lavava a roupa. Lurdes fazia o almoço. Lurdes fazia amor – era boa nisso. Lurdes até rezava! Aí um dia... Não gosto de lembrar. Mas o senhor quer saber a minha história, não quer? Pois, então, continuo. Eu saí cedo de casa. Era inverno. Havia uma neblina baixa. Tentei atravessar a rua. Me disseram que o motorista nem freou. Ele tava bêbado. E eu fui arremessado pra longe. Bati com a cabeça no asfalto. Fiquei desacordado. Três semanas. Acordei. Perguntei pela Lurdes. Ninguém procurou pelo senhor – o médico falou. Quis me levantar. O corpo todo doía. Fiquei uns três meses no hospital. E nenhum sinal da Lurdes. Tive alta. A cabeça cheinha de dúvidas. E fui logo procurar a Lurdes, a nossa casinha, o nosso lar. Perto do nosso barraco... O senhor me desculpe, mas eu ainda choro. Não queria lembrar. Mas agora que comecei, vou contar tudinho – tim-tim por tim-tim. Cheguei perto do barraco e vi a minha Lurdes. Ela vinha vindo agarrada com outro homem. Parecia feliz. Eu não aguentei. Pulei em cima do safado. Bati muito – ah, como eu bati! Tava com ódio. Tava com a morte no olhar. Tava com o peito... E a Lurdes? Gritava. Pedia socorro. Me chamava de monstro. Dizia que eu tava matando o seu homem. Ouvi isso. Parei. Olhei pra Lurdes. Meu coração ficou pedra. Fui embora. Sem rumo. Sem sentido. Pra onde? Vaguei. O corpo cansado. A alma pesada. Tristeza. Precisava dormir. A dor não deixava. Eu só bebia cachaça. Nem fome tinha. Parei debaixo de uma marquise. A chuva. O frio. A solidão. E perdi o prumo, o norte. Desacordei. Quanto tempo? Não sei. Acordei. Demorei a entender a realidade. Pensei em suicídio. Mas eu já não tava morto? Não era mais homem, não, meu senhor. Foi isso. Não quero mais falar. O senhor tá achando pouca coisa? Pode ser, pode ser. Mas não dá pra mudar o passado; o destino que a gente mesmo fabricou. Pensando bem, essas fotos podem até me ajudar. Quem sabe a Lurdes vê as fotos e acha que eu virei alguém na vida? Sei que é ilusão. Mas o que não é mentira nesse mundo de meu Deus? O senhor sabe, não sabe? O senhor já sofreu por amor? Não quer responder. Sei, eu entendo. Somos iguais, meu senhor. Somos gente. A diferença é que eu moro na rua. Isso pode acontecer com qualquer um. A Lurdes não disse que tinha amor pra sempre? Por que ela mentiu pra mim? O senhor não sabe responder? O senhor já vai? Também vou indo. O saco ainda tá vazio. Preciso catar lixo. Quanto mais entulho, melhor. É assim que tento esquecer a Lurdes. Por que tudo foi tão difícil pra mim? O senhor não sabe, sabe? Não tenho mais a Lurdes. Tenho só o meu corpo – o lixo.
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