sexta-feira, 23 de março de 2012

Luz da Palavra

Como poderá o coração exprimir-se? Como poderá outro compreendê-lo? - F. Tjutchev

Excerto do livro Pensamento e Linguagem, de Lev Semenovich Vygotsky:

[...] Se os pensamentos das duas pessoas coincidirem, pode-se conseguir um perfeito entendimento pelo uso dos simples predicados. [...] Nos romances de Tolstoi encontramos exemplos muito bons [...] Mas talvez o exemplo mais flagrante seja a declaração de amor entre Kitty e Levin por intermédio das letras iniciais:
“Há muito que desejava perguntar-lhe uma coisa.
— Faça favor.
— É o seguinte — disse ele, escrevendo as iniciais Q r: n p s, q d n m o n?. Estas letras queriam dizer: “Quando respondeu: não pode ser, queria dizer naquele momento, ou nunca?” Parecia impossível que ela pudesse compreender a complicada frase.
— Compreendo — disse ela.
— Que palavra é esta? — perguntou ele, apontando para o n que significava “nunca”.
— A palavra é “nunca” — disse ela, — mas não é verdade. Levin apagou rapidamente o que tinha escrito, estendeu-lhe o giz e levantou-se. Ela escreveu: N m, n p t r d m.
A sua face resplandeceu: tinha compreendido. A frase significava: “Naquele momento, não poderia ter respondido doutra maneira”.
Kitty escreveu as iniciais seguintes: p q p e e p o q s t p. Isto queria dizer: para que pudesses esquecer e perdoar o que se tinha passado.
Ele tomou o giz com mãos tensas e trêmulas, quebrou-o e escreveu as iniciais do seguinte: “Não tenho nada a esquecer e a perdoar. Nunca deixei de te amar”.
— Compreendo — sussurrou ela.
O rapaz sentou-se e escreveu uma longa frase. Ela compreendeu-a integralmente sem lhe perguntar se estava a ir bem, pegou no giz e respondeu-lhe imediatamente. Ele esteve um longo intervalo sem compreender o que tinha sido escrito e manteve olhar fixo no dela O seu espírito encontrava-se tonto de felicidade. Sentia-se completamente incapaz de deduzir as palavras que ela indicava; mas nos olhos radiantes e felizes da rapariga leu tudo o que precisava de saber. E escreveu três letras. Não tinha ainda acabado de escrever e já Kitty estava lendo por sob a sua mão e escrevia a resposta: “Sim”. Tinham dito tudo na conversação que tinham mantido: que ela o amava e que diria ao pai e à mãe que ele haveria de dirigir-se-lhes na manhã seguinte”. (Anna Karenina, Parte V, Cap. 13).
Este exemplo tem um interesse psicológico extraordinário, porque, tal como todo o episódio entre Kitty e Levin, Tolstoi o extraiu da sua própria vida. Foi precisamente desta maneira que Tolstoi comunicou a sua mulher o seu amor por ela.


Dostoievski relata uma conversação de bêbados inteiramente constituída por uma palavra irreproduzível por escrito:

Uma noite de domingo aconteceu ter-me abeirado de um grupo de seis jovens trabalhadores bêbados, tendo ficado a uns quinze passos deles. Subitamente apercebi-me de que conseguiam exprimir todos os seus pensamentos, sentimentos e até todo um encadeado de raciocínios por meio dessa única palavra, que, ainda por cima, é extremamente breve. Um dos jovens disse-a de uma forma rude e enérgica para exprimir o seu completo desacordo com algo de que todos tinham estado a falar. Outro responde com o mesmo nome, mas num tom e num sentido totalmente diferentes — exprimindo as suas dúvidas sobre os fundamentos da atitude negativa do primeiro. Eis senão quando um terceiro se exalta contra o primeiro, irrompendo abruptamente na conversação e gritando excitadamente a mesma palavra, mas desta vez como se fora uma praga ou uma obscenidade. Aqui o segundo parceiro voltou a interferir, zangado com o terceiro, o agressor, retendo-o, como querendo dizer: “Tens alguma coisa que te pôr às marradas? Estávamos a discutir os assuntos calmamente e logo vens tu, metes-te, e começas logo a praguejar!” E disse todo este pensamento numa só palavra, a mesma venerável palavra; só que desta vez também levantou a mão, pondo-a sobre o ombro do companheiro. Subitamente, um quarto, o mais novo do grupo, que até àquele momento se tinha mantido silencioso, como provavelmente tivesse encontrado repentinamente uma solução para a dificuldade inicial donde partira a discussão, levantou a mão num transporte de alegria e gritou ... Eureka, será isto? Terei encontrado a solução? Não, nem “Eureka”, nem “encontrei a solução”, repetiu a mesma palavra irreproduzível, uma palavra, uma simples palavra, mas com êxtase, numa explosão de comprazimento — manifestação essa provavelmente um pouco exagerada, porque o sexto membro do grupo, o mais velho deles, sujeito de aparência soturna, não gostou da coisa e cortou cerce a alegria infantil do outro, dirigindo-se-lhe num tom de baixo solene e exortativo e repetindo ... sim, repetindo exatamente a mesma palavra, a mesma palavra proibida em presença de senhoras mas que naquele momento queria dizer claramente “Para que são esses berros sem sentido?”. Assim, sem terem proferido mais nenhuma palavra, nem uma sequer, repetiram aquela elocução querida seis vezes de enfiada, seis vezes sucessivas e entenderam-se perfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de 1873).

Cada palavra é um microcosmo da consciência humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário