sábado, 31 de março de 2012

O Mar

Tenho orgulho, sim, seu moço, do mar
Nasci à beira do mar
Aprendi a ser gente olhando o mar
O primeiro amor
A primeira decepção
O mar como testemunha
O mar – Amar
Revolto
O mar
Sereno – baía – cais – proteção
O que tanto procuro em terra
(A paz
A alegria
O pão)
Enconto no mar
Preciso de muita coisa, não, seu moço
Tenho necessidade de maresia
Tenho necessidade de ondas
Tenho necessidade de calmaria
Tenho necessidade de tempestade
O mar – miscelânea que me faz humano
No mar o horizonte é sempre
A vida é outra
O homem é pleno – a mulher
Olhar de esperança
Mar de sal
Mar
Eu
Viro outro – cresço
O mar separa – barco encalhado
O mar une – barco a navegar
Cadê a distância?
Cedo aprendi a nadar
Mergulho na selva humana
Onde as palavras
Que me impedem de naufragar?
Bendito mar!
Bendito!

Fim de Tarde

Prisioneiros

É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o meu próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. Este é o nosso livre-arbítrio - Clarice Lispector

A Carta

Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!

Mário Quintana

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A respota que não veio...

Aldeia Barreiros X

Estrangeiro

Quando as palavras
Não mais encontram
Eco
No coração dos homens          
As mãos ignoram
O olhar
E a verdade se perde
Num estranho silêncio

Homens do Mar VII

Barco Encalhado

Há duas cousas neste mundo santas:
- O rir do infante, - o descansar do morto...
O berço - é a barca, que encalhou na vida,
A cova - é a barca do sidéreo porto...
Castro Alves

A Miséria

A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer
Que roda fora da pista.

Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,
Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.

É uma carreira invisível,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível
Pelo ruído imprevisto...
Sou assim. Mas isto é crível?

   Fernando Pessoa

Vontade

Vontade de contemplar
De não tocar no poema
Não desarrumar as palavras
(todas em lugar incerto)
Vontade de evitar a celeuma
E ouvir a ausência de rima
E olvidar a dúvida-quase-constante
O amor (ainda) presente
Até quando?
Ah, coração volátil!
Vontade de tocar o teu corpo
E desarrumar:
A cama
A trama
O enrendo
A cena do crime
Apagar o tempo
E sempre ser
A chama

sexta-feira, 30 de março de 2012

O Casal

- Apague a luz.
- Pra quê?
- Você sabe...
- Tô com dor de cabeça
- De novo!
- O que posso fazer?
- Procure um médico.
- Já procurei. Eu não tenho nada.
- Vem, chega mais perto...
- Tô com calor.
- Ligue o ventilador.
- Não gosto do barulho.
- (...)
- Boa noite
- (...)

Livro de Crônicas

Recebi o livro de crônicas do escritor Luiz Carlos Amorim, “Aphrodite e as Cerejeiras Japonesas”. E gostei de folhear suas páginas.
Dono de um estilo espontâneo e nada arrogante (traço condenável em muitos cronistas das folhas impressas), Amorim parece estar em sua casa, em seu quintal, tal é a simplicidade e a honestidade de suas palavras.
Não obstante toda essa cordialidade, em algumas crônicas Amorim eleva o tom; mostra-se inconformado com a realidade brasileira. E, semelhante ao Dr. Stockmann, personagem de Ibsen, em “Um Inimigo do Povo”, não teme navegar contra a corrente ou ficar sozinho, como fica explícito na crônica “O Livro Ilegível”.  
Sem empregar termos rebuscados, Amorim convida o leitor a puxar uma cadeira e deixar a conversa correr solta.
E isso é singular, muito singular.

Aldeia Barreiros IX

Arca de Salvação

Havia um Deus

I
Havia um Deus
Ente sem limites
Na minha infância;

Havia um Deus
E tudo era puro
Tudo em fantasia;

Havia um Deus
E sem me dar conta
Fui sendo dos outros;

Havia um Deus:
Na manhã da vida
Eram sem defeitos.

II
Nas folhas do rosto
O tempo é que assenta
O curso do dia
Com palavras plumes.

Chegado no agora
O feito cotejo
E sinto que sobram
Vontade e esperança.

III
O fogo que cuido
Aqui se alimenta
Aqui há tempero,
Vontade e esperança.


*******

Nada mais preciso

Nada mais preciso,
Neste meu precário
Efêmero reino,
Do que este silêncio
Que há no relógio
Do tempo irreverso;

Do que a solidão
Mais plena que tudo
Que há nestas paredes.

O meu mundo é agora,
Aqui e nunca mais.
Procuro sondar-me:
O desconhecido
Que há dentro de mim
É sempre tão vário
Ignoto diverso
Que fico perplexo
Tomado de espanto

Nada mais preciso
Que o mundo do verso:
Aqui me construo
A cada fonema

Zanon, Artêmio. Arca de Salvação: poemas. Florianópolis : Etnias, 2007.

Crônica da Urda

Falando com a minha mãe

                                                 (Para Minervina Klueger, minha mãe)                               

Sabe, mãe? Há coisas, agora, que já não tenho para quem contar. Há coisas que eu fazia ou vivia pensando em como contaria para a mãe, e que agora faço ou vivo sem ter mais nenhuma pessoa que se interessaria em saber a respeito. Talvez, a Margaret, mas ela foi-se embora da minha vida quando a Valentina era um bebê, e a Valentina já vai fazer 9 anos.
                                   Eu visitei meu primo Ralf Passold em novembro do ano passado e gostaria de poder contar para a mãe como foi, pois a mãe sempre queria saber tais coisas, mas agora já não tenho para quem contar. Então, escrevo.
                                   O Ralf está morando numa cidade chamada Aurora, numa localidade chamada Fundos Aurora. É muito longe de tudo – desde o centro de Aurora (que é minúscula) até lá são uns 15 km.  O Ralf comprou uma casa de negócios, uma construção enorme, que tem um bar e uma cancha de bocha. É aquele o único local de encontro da população local, além de duas igrejinhas, talvez três, pois deve ter a luterana também. O que vi foram a católica e a Assembléia de Deus. Então, nos sábados à noite, que é quando estive lá, algumas pessoas aparecem para tomar um refrigerante ou uma cerveja porque “já não agüentam mais ficar em casa sem ver ninguém”. Enquanto eu estava lá o Ralf falou para alguns clientes se já haviam conhecido a escritora Urda, etc. E, incrivelmente, lá naquele fim de mundo, as pessoas tinham meus livros e os liam!
                                   Eu disse fim de mundo, mas é um fim de mundo muito bonito. Passeei com a Iraide ao por do sol e tudo é tão bonito, por todos os lados! E para se chegar a Fundos Aurora, a maior parte da estrada está plantada, de ambos os lados, de rosas de Santa Rita. É uma iniciativa incipiente de turismo rural.  Com Iraide, vi duas ou três propriedades que já não eram rurais, mas casas de campo de gente que não era dali. E o Ralf tem um cachorrinho, e o Atahualpa estava comigo. Se a mão soubesse como o Atahualpa ficou grande, bonito e inteligente!
                                   Sobre o Atahualpa eu posso falar para outras pessoas, pois muitas o conhecem, e estou até escrevendo um livro sobre ele. Mas a quem mais interessara saber que fui visitar o Ralf e a Iraide? É em momentos assim que sinto a falta da mãe.   

                                   Blumenau, 25 de agosto de 2010.


Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Salve, Urda!

Aldeia Barreiros VIII

A foto foi tirada na esquina da Rua Moura com a Avenida Leoberto Leal. Demoliram a casa, ergueram um prédio. Barreiros muda. Onde a memória?

quinta-feira, 29 de março de 2012

Boa-Nova III


Fac-símile das páginas 14 e 15 do "Trinta-réis", com a divulgação dos meus livrinhos. Agradeço ao presidente da Academia São José de Letras, escritor Artêmio Zanon.

O Trinta-réis

Fac-símile do Boletim Informativo da Academia São José de Letras.

Distração

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!

Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

Boa-Nova II

Fac-símile do Suplemento Literário "A Ilha", editado pelo escritor Luiz Carlos Amorim. 

Aldeia Barreiros VII

Igreja Nossa Senhora de Lourdes

quarta-feira, 28 de março de 2012

Boa-Nova I

Da escritora Urda Alice Klueger, recebi três textos interessantes e atualíssimos.

a)      Havia um Wanderson Santos no meio do caminho. No meio do caminho havia um Wanderson, por Alex Morais.



 
b)      O Canário nas Minas de Carvão, por José Ribamar Bessa Freire.



 

c)      Clara de Assis: a coragem de uma mulher apaixonada, por Leonardo Boff.



 
E, assim, a palavra é partilhada – quase pão.

Agradeço, de coração, a atenção e o carinho da escritora.

Coisas Incertas

Estou ou sou?
Sei ser. Não sei estar?
Quando sou não estou?
Sou. Estou ao mesmo tempo?
Não-ser
Não-estar
Uma ausência:
De mim no outro
Do outro em mim
Do estar no ser
Do ser no estar
Estou em mutação?
Sou permanente?
De repente, estou.
De repente, sou.
Sou sim?
Sou não?
Estar em dúvida...
Sou criador ou criatura?
Sou sem ser
Estou sem estar
Fico:
Sem tato
Sem cheiro
Sem cor
Sem ar
Suspenso na memória
Ah, ser que nada sabe!
Ah, medo de estar imóvel!
Não sei onde estou
Sigo. Não sou eu?
Outro
(sempre outro)
Aquele que em mim não está
Aquele que em mim não sou
O que se perdeu
O que nunca se procurou
O que nunca viu a saída
E a porta sempre aberta

Homens do Mar VI

sexta-feira, 23 de março de 2012

Abrigo Passageiro

Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens? - Guimarães Rosa

Vigília

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles

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Mateus: Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora

Movimento Circular

Num círculo, o centro é naturalmente imóvel;
mas, se a circunferência também o fosse,
não seria ela senão um centro imenso.
(Plotino)

Luz da Palavra

Como poderá o coração exprimir-se? Como poderá outro compreendê-lo? - F. Tjutchev

Excerto do livro Pensamento e Linguagem, de Lev Semenovich Vygotsky:

[...] Se os pensamentos das duas pessoas coincidirem, pode-se conseguir um perfeito entendimento pelo uso dos simples predicados. [...] Nos romances de Tolstoi encontramos exemplos muito bons [...] Mas talvez o exemplo mais flagrante seja a declaração de amor entre Kitty e Levin por intermédio das letras iniciais:
“Há muito que desejava perguntar-lhe uma coisa.
— Faça favor.
— É o seguinte — disse ele, escrevendo as iniciais Q r: n p s, q d n m o n?. Estas letras queriam dizer: “Quando respondeu: não pode ser, queria dizer naquele momento, ou nunca?” Parecia impossível que ela pudesse compreender a complicada frase.
— Compreendo — disse ela.
— Que palavra é esta? — perguntou ele, apontando para o n que significava “nunca”.
— A palavra é “nunca” — disse ela, — mas não é verdade. Levin apagou rapidamente o que tinha escrito, estendeu-lhe o giz e levantou-se. Ela escreveu: N m, n p t r d m.
A sua face resplandeceu: tinha compreendido. A frase significava: “Naquele momento, não poderia ter respondido doutra maneira”.
Kitty escreveu as iniciais seguintes: p q p e e p o q s t p. Isto queria dizer: para que pudesses esquecer e perdoar o que se tinha passado.
Ele tomou o giz com mãos tensas e trêmulas, quebrou-o e escreveu as iniciais do seguinte: “Não tenho nada a esquecer e a perdoar. Nunca deixei de te amar”.
— Compreendo — sussurrou ela.
O rapaz sentou-se e escreveu uma longa frase. Ela compreendeu-a integralmente sem lhe perguntar se estava a ir bem, pegou no giz e respondeu-lhe imediatamente. Ele esteve um longo intervalo sem compreender o que tinha sido escrito e manteve olhar fixo no dela O seu espírito encontrava-se tonto de felicidade. Sentia-se completamente incapaz de deduzir as palavras que ela indicava; mas nos olhos radiantes e felizes da rapariga leu tudo o que precisava de saber. E escreveu três letras. Não tinha ainda acabado de escrever e já Kitty estava lendo por sob a sua mão e escrevia a resposta: “Sim”. Tinham dito tudo na conversação que tinham mantido: que ela o amava e que diria ao pai e à mãe que ele haveria de dirigir-se-lhes na manhã seguinte”. (Anna Karenina, Parte V, Cap. 13).
Este exemplo tem um interesse psicológico extraordinário, porque, tal como todo o episódio entre Kitty e Levin, Tolstoi o extraiu da sua própria vida. Foi precisamente desta maneira que Tolstoi comunicou a sua mulher o seu amor por ela.


Dostoievski relata uma conversação de bêbados inteiramente constituída por uma palavra irreproduzível por escrito:

Uma noite de domingo aconteceu ter-me abeirado de um grupo de seis jovens trabalhadores bêbados, tendo ficado a uns quinze passos deles. Subitamente apercebi-me de que conseguiam exprimir todos os seus pensamentos, sentimentos e até todo um encadeado de raciocínios por meio dessa única palavra, que, ainda por cima, é extremamente breve. Um dos jovens disse-a de uma forma rude e enérgica para exprimir o seu completo desacordo com algo de que todos tinham estado a falar. Outro responde com o mesmo nome, mas num tom e num sentido totalmente diferentes — exprimindo as suas dúvidas sobre os fundamentos da atitude negativa do primeiro. Eis senão quando um terceiro se exalta contra o primeiro, irrompendo abruptamente na conversação e gritando excitadamente a mesma palavra, mas desta vez como se fora uma praga ou uma obscenidade. Aqui o segundo parceiro voltou a interferir, zangado com o terceiro, o agressor, retendo-o, como querendo dizer: “Tens alguma coisa que te pôr às marradas? Estávamos a discutir os assuntos calmamente e logo vens tu, metes-te, e começas logo a praguejar!” E disse todo este pensamento numa só palavra, a mesma venerável palavra; só que desta vez também levantou a mão, pondo-a sobre o ombro do companheiro. Subitamente, um quarto, o mais novo do grupo, que até àquele momento se tinha mantido silencioso, como provavelmente tivesse encontrado repentinamente uma solução para a dificuldade inicial donde partira a discussão, levantou a mão num transporte de alegria e gritou ... Eureka, será isto? Terei encontrado a solução? Não, nem “Eureka”, nem “encontrei a solução”, repetiu a mesma palavra irreproduzível, uma palavra, uma simples palavra, mas com êxtase, numa explosão de comprazimento — manifestação essa provavelmente um pouco exagerada, porque o sexto membro do grupo, o mais velho deles, sujeito de aparência soturna, não gostou da coisa e cortou cerce a alegria infantil do outro, dirigindo-se-lhe num tom de baixo solene e exortativo e repetindo ... sim, repetindo exatamente a mesma palavra, a mesma palavra proibida em presença de senhoras mas que naquele momento queria dizer claramente “Para que são esses berros sem sentido?”. Assim, sem terem proferido mais nenhuma palavra, nem uma sequer, repetiram aquela elocução querida seis vezes de enfiada, seis vezes sucessivas e entenderam-se perfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de 1873).

Cada palavra é um microcosmo da consciência humana.

A Isaurinha

A Isaurinha me ligou. Quer que eu a acompanhe à festa de lançamento do livro de seu marido. Disse-me que não sabe como se comportar enquanto o  Martins autografa o romance. Tentei contornar a situação. Disse-lhe que não tem nada demais. Que basta cumprimentar uma ou outra pessoa; a maioria conhecida dela, e só. Mas a Isaurinha não tem jeito. Sempre acha que pode cometer alguma gafe, que ficará sem voz, que ira tremer... Tola! Não sei o que poderia dar errado. Ainda mais sendo a mulher do autor do livro. Se fosse comigo, ficaria muito feliz. E esnobaria aquelas mulheres que trabalham com o Martins. Principalmente a Carmem. Que mulher insuportável! Vive de nariz empinado. Certa vez, falei dela pro Martins, que não gostou nem um pouco. Achou que eu estava implicando com as pessoas que o cercam. Mas ele tá enganado. Se fosse implicância minha eu não falaria nem mesmo com a Isaurinha. Aliás, não sei como o Martins a aguenta. Ela nunca tá contente com nada, vive deprimida, chorando pelos campos... Se faz sol, quer chuva; se chove, quer sol. Indecisa! Pensando bem, se a Isaurinha tá me convidando é porque não desconfia de nada. Coitada! Mal sabe ela que a cena mais picante do romance foi inspirada na minha primeira noite com o Martins. Será que ela não desconfia de nada, mesmo? Não sei, não sei. É melhor eu me cuidar; não arriscar. E, se durante a sessão de autógrafos, a Isaurinha me perguntar onde foi que o Martins encontrou inspiração pra escrever aquilo? Se isso acontecer, desconverso; invento uma mentira qualquer. Sei lá! Afinal, eu não tive culpa se o destino colocou o marido dela no meu caminho. No começo, é verdade, eu me preocupava com a Isaurinha. Com o tempo, acostumei-me com a situação e esqueci que eu era a outra – encontros incertos, prazer sincero. Acho que me sinto meio dona do Martins. Tá decidido! Não irei ao lançamento do livro. Depois da festa, o Martins vem aqui em casa pra gente comemorar. É mais seguro. Já comprei até uma camisolinha nova, como ele gosta. E a Isaurinha? Bem, ela que se entenda com o Martins. A Isaurinha não é a esposa? Eu só quero é ser feliz, nada mais.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Tantas Palavras

Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. (Clarice Lispector)

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

(Cecília Meireles)

Falar é completamente fácil,
quando se têm palavras em mente
que expressem sua opinião.

Difícil é expressar por gestos e atitudes
o que realmente queremos dizer,
o quanto queremos dizer,
antes que a pessoa se vá.

(Carlos Drummond de Andrade)

Gesto Simples

Quero a delicia de poder sentir as coisas mais simples.
Manuel Bandeira

Aldeia Barreiros VI

Igreja São Judas Tadeu (detalhe  noturno)


Aldeia Barreiros V

O Costão

Por um Fio

Os grandes erros são muitas vezes feitos como as cordas, de uma quantidade de fios - Victor Hugo

Homens do Mar IV

Pescador...
Olho no mar – o peixe
O movimento da maré
A atenção – dia a dia
Remo
Rede
Refluir
A Canoa – o abrigo
A hora certa – lançar a rede
A fartura – que não há
A esperança – hoje e sempre
Pescador...

E Jesus andando ao longo do mar da Galiléia viu dois irmãos - Simão, chamado Pedro, e seu irmão, André, os quais lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens – Mateus 4: 18-19

Aldeia Barreiros IV

A pedra Batata

Sem Estação

Noite de sábado. Garoa. Vento cortante. Isabel queria ir ver a mostra fotográfica sobre a praia do Pântano do Sul. Relutei. Ela teimou, insistiu. Cedi. Entre uma foto e outra, afastei-me de Isabel. Envolvida com a exposição, não percebeu a minha saída. De longe, fiquei observando o seu deslumbramento diante das fotos. Divaguei. E os meus olhos distraídos pousaram numa foto. A força da imagem. Um susto! Era a mesma pedra. Imensa. Imóvel. Inabalável. Voltei no tempo – o passado. E me vi diante de Mariana – a menina que tinha sardas no rosto. Filha de pescador. Vivia na praia. Ora dentro d’água, ora esticada na areia, bronzeando-se. Um mergulho. A água fria do Pântano. Os raios de sol. O verão. E nossos olhos se encontraram. A primeira vez. Um sorriso molhado. A Aproximação. A fala nervosa. Mariana... Os seus cabelos longos, e loiros, e crespos. A sua pele tostada pelo sol. Os seus olhos azuis. Sem demora, um feitiço. Uma vontade de ficar para sempre nela. Sem demora, a negação. O pai não queria. O pai não deixava. Eu. Sem Mariana. Sem ar. Cadê a vida? Ah, o amor não conhece fronteiras! Uma saída: encontros escondidos. Dois ladrões. A culpa. O medo. E se alguém descobrisse? E o amor foi descoberto. Era fim de tarde. A vazante da maré. O quebrar excitante das ondas. A solidão da praia. O vento macio. Caminhando. Eu. Mariana. Nossas mãos se tocaram. Nossos corpos se tocaram. A entrega. Além do mar, eu e Mariana. Melhor: além de nós, ninguém. De repente, o silêncio partido. É o meu pai – Mariana falou. Eu. Sem reação. Estatelado. Gelado. Sem vida. Uma pedra. Mariana correu. O pai. A repreensão. A força. O castigo. A dor. Quanto tempo sem ver Mariana? Não sei. O amor também não tem estação. E foi num domingo. Havia sol. Era de manhã. O vento forte. O pai na pesca. A mãe na missa. Meus olhos encontraram os de Mariana. Falaram. Sorriram. Renovaram o amor. Um novo encontro. Vamos fugir – eu falei. Tu tá loco – Mariana falou. Sábado, à noite, te espero no Morro das Pedras – revelei o meu plano. Noite de sábado. Garoa. Vento cortante. Aguardei Mariana. Esperança – a última que morre. Em vão. A menina que tinha sardas no rosto não veio. Eu. Sozinho. O mar - imenso. A pedra - imóvel. Sofri. Naquele momento, não entendi o que eles diziam...
- Anselmo, tá tudo bem?
A voz de Isabel. A realidade. Falei:
- O mar que bate na pedra nunca é o mesmo. A pedra, embora parada, é sempre outra. Estamos em mutação. O novo chega, vence.
Isabel nada entendeu. Cochichou:
- Bobo...
Gosto quando Isabel me trata como criança.

Varal da Manhã

No presente,
a mente,
o corpo é diferente.

E o passado é uma roupa que não nos serve mais.
Belchior

Vazio Criativo

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
(Manoel de Barros)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Pescador IV

Quem sabe direito o que uma pessoa é?
Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado
(Guimarães Rosa)

Entreato

O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem,
uma corda por cima do abismo - Friedrich Nietzsche.

O Intervalo

Nesse espaço
Há um intervalo de tempo
Tênue – quase nulo
Nem meu
Nem teu
Sem dono
Um momento
Uma oscilação
Única e indizível
Para além das misérias humanas
Para além dos sentimentos hostis
Um nada – o nirvana
Luz azul – cheiro de éter
Uma ranhura
O limbo
Um instante divino
Antimatéria
Átomos
Prótons e neutros
Em colisões
Orgásticas
A vontade ad aeternum
Onde somos plenos
Mutantes
Copos sincronizados
Corpos pulsantes
Explosões
Radiações
Elementos únicos
Que se desprendem
Na cadência do prazer
Corpo
Natureza
Nem homem
Nem mulher
Andrógino
Yin yang
Nesse espaço
Num só tempo
Nesse instante
No estar entre
Na quase separação
A entrega
Fora desse tempo
O esquecimento
Entre grades
Entre
Barreiras
Um muro
O fosso
A separação
Estar entre
E não ultrapassar
E não saber
Sonhar...
Grades de algodão
A distância que nos separa
Do que somos
- ou tememos ser -
Grades minhas, tuas - nuas
O vento passa
A vida passa
Ficamos
No compasso
Da espera
A escolha
É minha
É tua
onde está a saída?