sábado, 22 de dezembro de 2012

Hoje encontrei o Natal


(Escrito em 2008, logo após a Tragédia das Águas que assolou Santa Catarina)

Hoje encontrei o Natal. Meu cachorro me acordou antes da hora costumeira, seis e pouco no relógio, e saí com ele para dar a volta matinal. No portão aqui do nosso abrigo de flagelados passava um homem empurrando uma bicicleta e levando uma cachorrinha presa por uma corrente.

No primeiro momento, só vi a cachorrinha, amizade certa para o meu cachorro, e os dois pularam um no outro e se lamberam, e o dia começava prometendo ser bom. O homem perguntou:

- A senhora sabe qual é o caminho que se deve tomar para se chegar à BR 470?

Eu disse que ele estava certo, que era seguir sempre em frente aquela rua, que ele acabaria chegando à BR 470.

- E lá vai dar em Guaramirim, não é mesmo?

Não, não era mesmo. Para Guaramirim havia que se tomar a rodovia Guilherme Jensen, e lhe expliquei como fazer, onde entrar.

- Mas não dá para ir pela BR 470?

Para Guaramirim não dava. Prestei mais atenção no homem, um dos tantos andarilhos que circulam por nossas estradas nestes tempos estragados pelo neoliberalismo, apesar de agora já estar mais que comprovado, lá nos centros de poder, que o neoliberalismo não passava de uma falácia das piores, simples estrangulador de pobres para encher cofres já abarrotados de ricos.

O homem da manhã estava incrivelmente sujo e coberto de feridas, com dois abcessos abertos nas bochechas. Havia muita crosta e muito pus em muitos lugares, e cobrindo tudo, a grande crosta de pó que é vestida, atualmente, quando a gente se locomove pelas ruas ou estradas da minha região, depois que secaram os mares de lama oriundos do derretimentos dos morros. Um executivo que saísse a andar por aí de bicicleta acabaria com a mesma crosta de pó – só não teria as feridas e os abcessos. Fiquei pensando: seria uma doença, ou seria falta de determinadas vitaminas? Talvez fossem as duas coisas; talvez fossem algumas doenças; quem garante que os abcessos nas bochechas não proviessem de terríveis dores de dentes que aquele homem sorridente com sua cachorrinha tivesse tido só e desamparado, nos escondidos de passar a noite que ele devia conhecer? Aí ele me disse:

- Mais para frente há acostamento? É que meu braço está quebrado em dois lugares, e está difícil tocar a bicicleta. Com acostamento fica mais fácil...

Só então reparei no gesso do braço esquerdo, tão coberto de pó e sujeira que a gente nem prestava atenção.

Sim, haveria acostamento mais para a frente, e fomos conversando, e os cachorros foram correndo, e eu lhe mostrava as muitas feridas nos morros, de onde a minha cidade sangrara como nunca havia sangrado antes, e as casas que já não existiam, e outras casas que haviam ficado enterradas na lama até a altura da metade das janelas...

- Quantos quilômetros o senhor faz por dia, com essa bicicleta?

- Dá para fazer uns 80...

- E a cachorrinha anda isso tudo?

- Não, ela vai aqui no engradado...

Havia um engradado de plástico amarrado no bagageiro da bicicleta, onde o homem carregava seus bens. Não olhei muito, só reparei que havia uma garrafa de dois litros quase cheia de água.

A cachorrinha tinha se animado demais, andava fazendo umas incursões para o meio da rua, e ele temeu por ela. Puxou-a pela correntinha, colocou-a no engradado, onde ela ficou, toda faceira e feliz, sem nem se importar com a interrupção das brincadeiras que fazia com meu cachorro. Ela amava profundamente aquele homem, morreria por ele. E ele me contou:

- Era uma filhotinha jogada fora. Encontrei-a perdida numa rua de Navegantes. Está com quatro meses.

Conversamos rua afora, e fui descobrindo que aquele homem entendia de todas as estradas e cidades do sul do Brasil.

- Em Barra Velha – contou-me – há uma mulher que tem doze cachorros. Todos grandes. Ela os acha na rua e leva para casa. É uma mulher de coração muito bom. Gasta mil reais por mês, só de ração.

Eu me admirava.

- Lá em Itajaí a enchente foi terrível. Eu vi como as casas de madeira ficaram imprestáveis. Mas a senhora tem certeza de que para ir a Guaramirim não tem que pegar a BR 470?

Eu tinha. Perguntei-lhe o nome. Era José Aparecido e já não lembro o sobrenome, que ele tinha um singelo orgulho de ostentar, como quem tem um último bem que não pode ser roubado por nenhum neoliberal.

- Em Guaramirim eu tenho amigos! – ele me contou, como um segredo de enorme valor, e me fez lembrar de Saint-Exupéry. Eu estava mesmo bem curiosa para saber o que ele ia fazer numa cidade pequenininha. – Já trabalhei seis meses em Guaramirim catando papel, tenho amigos lá. Os meus amigos de lá fazem festa de Natal! No ano passado teve até chope!

Pronto, estava explicado! Fiquei com um bocado de vergonha desta dor que há dentro de mim, que está me impedindo até de ouvir música de Natal, quando ela aparece sem querer.

Ele contou-me outras coisas, sobre os três carrinhos de catador que já tivera; sobre as diferenças de preços de latinhas vazias que existia em Blumenau e em Curitiba – agora só tinha a bicicleta e a cachorrinha, que ia que ia montada na garrafa de água do engradado.

- Mas a senhora tem certeza de que para Guaramirim não tem que passar pela BR 470?

Garanti-lhe de novo, dei mais indicações do caminho. Perguntei:

- Como é a festa de Natal em Guaramirim? Tem galinha assada?

- Tem de tudo, dona. Tem carne, tem maionésia, tem chope! Tem até as mulheres que trabalham lá! – ele não disse da fraternidade que deveria ter, do consolo dos braços amigos, que sabe do reencontro com alguma antiga namorada, mas tudo estava implícito na intensidade da emoção dele.

Eu deveria voltar, já fora longe demais pela empoeirada Rua das Missões, onde íamos caminhando, e via meu cachorro de língua de fora. Disse-lhe:

- Tenho que ir. Meu cachorro já está com sede.

Então, a galanteza maior de todas que ele poderia ter feito:

- Mas tem água aqui na garrafa, dona. Pode dar para o cachorro.

Sei bastante da vida dos andarilhos deste mundo para saber que não conseguem água com facilidade, que muitas vezes são apedrejados quando se aproximam de alguma casa para pedir água, pois as famílias pensam que eles vêm para lhes roubar as crianças. Aquele homem de abcessos nas bochechas e esmagado pelo poder do Capital dividia sua última riqueza sem nem pensar. Então me senti pequena e mesquinha diante da grandeza dele, e fiquei com vontade de chorar. Antes que o fizesse, despedi-me, e ele me apertou a mão sem nenhum constrangimento pelas feridas supuradas, com a galhardia de um rei.

- Boa viagem para o senhor! Não esqueça de virar à direita onde lhe ensinei!

- Feliz Natal, dona! É uma pena que a conversa já está acabando tão cedo! É muito bom viajar quando a gente pode ir conversando!

Em Guaramirim, vai haver um grande Natal! É uma notícia muito boa. Será que aquele homem não era um dos reis magos e não estava encardido assim por ter atravessado os desertos bíblicos?

Feliz Natal, José Aparecido! Aqui, choro de emoção por ter encontrado assim o Natal!

Blumenau, 14 de Dezembro de 2008.

Urda Alice Klueger

Escritora.

 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Cartão da Urda


Farejando Auroras


Por Elaine Tavares - jornalista

E então já está por aí o natal. É o que me diz a televisão em promoções a granel. Já, para mim, essa não é uma data de presentes e compras compulsivas. É o aniversário de um dos meus deusinhos: Yeshua, Jesus. Digo deusinho porque não arrogo a ele poderes sobrenaturais. O vejo assim, homem, cheio de dúvidas sobre seu destino, a clamar pelo pai na cruz. O vejo menino, a questionar as leis juntos aos velhos encarquilhados em certezas ultrapassadas e aprisionantes. O vejo jovem, a arrancar os outros de seu conforto, propondo a ilegalidade e a rebeldia. Gosto demais desse Jesus arrogante, a expulsar vendilhões do templo, denunciando-os e apontando-lhes o dedo. Encanto-me com o Jesus que se coloca diante do poder e, arriscando morrer, levanta a cara e diz ao ser acusado de ser deus: “assim o dissestes”. E se entrega ao juízo do povo, mesmo sabendo que esse mesmo povo que ele tanto amou, o vai abandonar, preferindo Barrabás. É esse guri que eu espero nas noites de natal. Aguardo, cheia de esperança, que ele renasça nos jovens que vejo andar por aí a fazer a luta, a questionar as leis, a apontar os vendilhões, a demolir as certezas de um sistema que mata e exclui.

Sei também que a data do natal está conectada a tempos ancestrais, celebrados desde as eras imemoriais por todas as culturas da terra. O solstício de verão, o começo de uma nova estação cheia de beleza e luz. Sei que era nesse dezembro que as gentes de outros tempos dançavam sob o fogo, cantavam e esperavam que a vida revivesse e a roda do mundo seguisse seu curso no rumo do bem-virá. Por isso, gosto também de me perder nessa esperança do povo andino, o Qhapac Rayme, e oferecer alimento a mãe-terra, Pachamama, confiando em suas bênçãos e na vida que brota. É alimento, e faz com que eu veja que as coisas sempre nascem, do nada, da dor, da desesperança, da desilusão. Há sempre um reviver. Isso é o natal, essa data mágica de todas as fés.

Então, quando chega esses dias de natal, gosto de celebrar. Um pouco como as culturas antigas, um pouco como as da minha gente ancestral, mas, nascida e criada na herança cristã, também me apetece compartilhar com meu deusinho o dia do seu nascimento. Porque Jesus, como tantas outras divindades de tantas outras religiões, nasce no dezembro, perto do solstício, essa noite curta que promete vida, e nada mais. Tão simples, tão densa. E, nesse 2012, ainda mergulhada nas interpretações das lendas maias, de fim de um longo tempo de escuridão. Porque é disso que falam os maias. Fim de uma era, começo de belezas... Talvez, como dizem os andinos, o começo de um novo pachakuti, uma virada de pernas para o ar de tudo que há. Outra lógica, outra forma de viver no mundo. Quem nos impede de crer? E de lutar por isso?

Assim, este ano, nessas semanas que antecedem o natal, o fim da era maia, o novo pachakuti, vou adentrar pelas noites, farejando a vida. Que ela venha, pelas mãos dos velhos amigos, e na caminhada dos novos, que chegam agora e já se comprometem com tanta força. Espero-te meu deusinho, assim como espero todas as divinas criaturas capazes de brotar fogueiras em mim e em todos os que amo! Porque acredito que não há escolhidos, eleitos, nem deuses que são maiores que outros. Toda a crença do homem, inventada para sustentar seus terrores, remete a uma única e abençoada certeza: de que somos uma raça frágil, que necessitamos uns dos outros, e que estamos procurando, juntos, a terra sem males.

Então, desde o 21 de dezembro até o natal, que se dance pelas ruas, como dizia Nietzsche, e que seja tudo pelo bem das gentes. Todas as gentes, com todos os deuses e deusas... E que brote o amor, esse sentimento revolucionário, e que se mude a vida...

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A Força

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite - Clarice Lispector. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Nação Poesia


Para além da (ótima) poesia, um reencontro com o que há de melhor no ser humano. Eis o que apreendemos ao ler "Nação Poesia", de Luiz C. Amorim.

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Natal do Menino


Véspera de Natal. O menino ansioso. Sonha o presente. Olha pela janela. Céu sem estrela. O calor do verão. O silêncio da noite. Papai Noel voa? Pensa que sim. E vasculha o céu. Procura. De que lado ele vem? Não sabe do Sul. Não sabe do Norte. Sabe esperar. E aguardar cansa. O menino esfrega os olhos com as mãos. Difícil ficar acordado. A cabeça balança. Ele se esforça. Em vão. É vencido pelo sono. E o menino sonha... Segue num trenó vermelho. Grande, muito grande. Seis ou oito renas – não sabe contar. Há também um velhinho. Barbas brancas, muito brancas. Papai Noel! Vontade de gritar. O trenó segue rápido. O saco cheio de presentes. Vai dar tempo de entregar tudo? O menino olha a lista. Letras, muitas letras. Seu nome está ali? Ele não sabe ler. O trenó para. Papai Noel entra numa casa. Não demora a regressar. A viagem prossegue. Vontade de perguntar tanta coisa! Papai Noel responde? O menino fica com medo. Não quer atrapalhar. Outra casa... Mais outra... E o saco vai ficando vazio. Quase fim de noite. Resta apenas um presente. Será o meu? – o menino pergunta. Esperou o ano todo. O velhinho desce do trenó. E demora a voltar. Na verdade, não volta. O menino preocupado. O que aconteceu? As renas se assustam. O desequilíbrio. O menino cai. O vazio... A janela bate com o vento. O menino se acorda. Cadê o presente? Olha em volta. Procura. Casa pobre, muito pobre. Pequena. Quase sem tinta. Uma cama. Cinco pessoas dormem. Papai Noel existe. Não foi assim que ele viu na TV? O coraçãozinho do menino bate forte, muito forte – quase sai do peito. Volta à janela. Uma luz no céu. Então, não é sonho! É o trenó que brilha. O menino sorri. Quer chamar a mãe. Quer chamar os irmãozinhos. Todos dormem. Ele olha de novo. Céu nublado. Escuro. Breu. E o menino fecha a janela. Afasta o bracinho do irmão. Deita-se na cama. Fecha os olhos. Dorme. E não sonha mais.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Divulgação

O romance "Desenho a Giz" ganhou destaque na Agenda Cultural de São José.

Para conhecer o trabalho do pessoal da Agenda, segue o link:

http://www.ctpmsj.sc.gov.br/

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Desenho a Giz - Lançamento


     Após “Gurita”, seu romance de estreia e que lhe valeu o prêmio Revelação Literária 2011, concedido pela Academia Catarinense de Letras, Marcos Meira lança “Desenho a Giz”. O romance narra a história de Orlando, que, após vinte um anos, retorna a Barreiros, distrito de São José, para resolver uma questão judicial com uma construtora. Desde que chega à sua terra natal, Orlando vai examinando as mudanças que ocorreram no bairro e com Heloísa, sua amiga de infância e que sempre nutriu um amor (quiçá platônico) por ele. Orlando, apesar das vicissitudes da vida, consegue modificar o seu destino; já Heloísa permanece presa a um trauma de infância, que a impede de ser feliz. Alternando passado e presente, o autor, que em novembro de 2012 foi eleito para a Academia São José de Letras (Asajol), questiona o que leva as pessoas a serem o que são; que aspectos determinam a personalidade de cada uma.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Uma partilha - A Academia - ASAJOL

É com alegria que divulgo o e-mail que recebi do Sr. Artêmio Zanon, presidente da Academia São José de Letras - Asajol:

Prezado Escritor
Marcos Antônio Meira.
Saudações.

Se já não tiver conhecimento, é com muita honra que lhe comunico que o ilustre Escritor
teve seu nome sufragado para vir a integrar o rol dos Imorais da Academia São José de Letras.
Como sabe, a eleição ocorreu no último sábado (dia 10), e como tive que viajar logo após a votaçao,
e onde me encontrrar não havia facilidade de comunicação, então, nesta feita e por este meio
de comunicação, queira aceitar, em nome da ASAJOL, meus cucmprimentos.
A partir desta data coloco-me ao seu inteiro dispor para aviarmos a tramitação de sua posse.
Atenciosamente.

Acadêmico Artêmio Zanon
Presidente da ASAJOL


E, assim, o escrever vira responsabilidade.

Salve!

sábado, 14 de julho de 2012

Atitude

Outro sinal de se estar em caminho certo é o de não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender - Clarice Lispector.

domingo, 24 de junho de 2012

A Verdade

A verdade, dizia-se, sorrindo com ironia. A verdade. Bem, digamos: UMA verdade; mas a verdade não era uma verdade? Não se atingia “a” verdade indo ao mais profundo de um só coração? Afinal, não eram idênticos todos os corações?
Um só coração, dizia.
Ernesto Sabato, in Sobre Heróis e Tumbas.


domingo, 10 de junho de 2012

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O Passarinho


"Sempre disse que o meu amor tem um passarinho por dentro..." - Urda A. Klueger, in Trinados para o meu passarinho.


A Cura

"Depois, caindo em si com o abraço que ela lhe oferecia, foi quase como se uma lágrima quisesse descer. Ela amava alguém que era triste, de uma tristeza que somente o mar poderia curar" - Karine A. Ribeiro, in No Outro Lado do Mar.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Nada além

Há impossibilidade de ser além do que se é -
no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio,
sou mais do que eu, quase normalmente -
tenho um corpo e tudo que eu fizer é continuação
de meu começo......
a única verdade é que vivo.
Sinceramente, eu vivo.
Quem sou? Bem, isso já é demais...

Clarice Lispector

domingo, 27 de maio de 2012

Mãos Vazias

         Hoje roubei todas as rosas dos jardins 
        e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
         Eugénio de Andrade

terça-feira, 22 de maio de 2012

Desatino

Eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério. É que tem mais chão nos meus olhos do que cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça - Cora Coralina.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

É MUITO DIFERENTE, HOJE, IR-SE A MACHUPICHU!


 (Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006)


No outro dia era o dia de ir a Machupichu, isto é, para quem quisesse. Como também já descrevi Machupichu no livro “Entre condores e lhamas”, já citado mais de uma vez mais para trás, vou aqui me limitar a contar que o acesso a Machupichu mudou muito desde que lá fora a primeira vez. Em 1993 fora até lá em animado trem cheio de peruanos e turistas, onde ambulantes vendiam gostosas comidas e um galo cantava alegremente dentro de um balaio. Onze anos depois as coisas tinham mudado muito.  Para se pegar esse alegre e animado trem, atualmente, é necessário ser-se peruano. Como uma das famílias limeñas que estava no encontro de Motociclismo resolvera também ir a Machupichu naquele dia, Kako, o rapaz de Porto Alegre, com seu jeitão de salteador espanhol juntou-se a eles, disfarçou-se de peruano ... e foi a Machupichu por 25 soles, o que dá mais ou menos 20 reais (8 ou 9 dólares). 
Pessoas de outras nacionalidades interessadas a ir a Machupichu, atualmente, podem fazer duas opções: um trem de 90 dólares ou outro de 120 dólares. O de 120 dólares tem, inclusive, teto solar, e champanha francesa a rodo. Nós que fomos, fomos no de 90 dólares, triste trem sem choclo com queijo para comprar, sem galo cantando dentro de um balaio, só cheio de gente solene, ilhada em pequenos grupos de línguas diversificadas, que não tinham como se comunicar.  
O saltar do trem, no sopé da montanha onde, no alto, fica Machupichu, foi outra surpresa: onde no passado houvera o pequenino povoado de Águas Calientes e um ou outro artesanato para comprar, agora virara uma feira de artesanato, com centenas de lojinhas e vendedores vendendo todo o tipo de artesanato possível e imaginável que o Peru produzisse. Aquele era um lugar estreito e apertado entre duas montanhas, onde mal e mal passava o trem e havia um minúsculo povoado, não comportava toda aquela gente, todo aquele artesanato e toda aquela balbúrdia. Se os Filhos do Sol sonhassem que um dia o seu mundo seria assim invadido!   

Observação:
Descobri, depois, que se for de ônibus até a estação seguinte de trem, pode-se continuar pegando o alegre e colorido trem para Machupichu, aque todo animado, e que custa 25 soles. 

Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela FPR

quarta-feira, 16 de maio de 2012

E...

e já não
era sem tempo
o balanço
das ondas
levando um sonho
pra longe
daqui
 
em mim

domingo, 13 de maio de 2012

Matéria Simples

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções
irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado
do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter
tido junto e não tivemos,por todos os shows e livros e silêncios que
gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas
as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um
amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os
momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas
angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma
pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez
companhia por um tempo razoável,um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um
verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do
sofrimento,perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional...

Carlos Drumond de Andrade

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O Inesperado

Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É exatamente o inesperado

Clarice Lispector

Sem Medida

Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim - Walt Whitman.

Não tem jeito. Diante do mar, encontro-me.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A mulher, ouvindo estrelas...

                                                                                                   Por Elaine Tavares - Jornalista
 
Jurara nunca mais beber. Não queria mais o mundo girando, girando, a boca solta, os pés trôpegos, a mente em voo livre. Haveria de ficar no chão. Desde pequena lhe diziam que andar pelo caminho das estrelas era coisa de louco. Ela tentara fugir. Não conseguira. Aos sete anos vira seu primeiro disco voador. Ninguém acreditara. Mas, na noite escura, lá estava ele. E mesmo quando no entardecer de um quente verão, quando todos viram aquele grande charuto cheio de janelas passando devagar, insistiram em negar. Ela ficara sozinha, olhando a coisa sumir no horizonte, rezando para que dali saísse um raio de luz e a levasse para sabe-se lá onde.

Sumida entre livros de Asimov e revistas que falavam sobre UFOS ela passou a infância e a adolescência. Eram seus amigos mais leais. Perry Rodan e suas peripécias, capitão Kirk, Spock, as mais incríveis criaturas dos planetas mais distantes. Eram suas redes a embalar a solidão e a incompreensão para as coisas do mundo “normal”. Mas, nesse mundo secreto não havia tristezas. Só esperanças de que um dia o mundo pudesse ser, de fato, habitável aos seres sensíveis capazes de falar com e ouvir estrelas, tal como dizia Bilac.

O tempo passou, a guria cresceu, o disco não veio, o mundo estragou. Tempos de rede não se prestam a solidões. Os edifícios escondem o céu, as estrelas sumiram, não falam mais. As palavras desconexas que reverberam na cabeça ninguém mais sabe dizer de onde vem. “Essa aí nunca foi normal”, dizem as vizinhas. E ela sorri, agradecida. Nunca quisera a normalidade de um mundo em escombros.

O cabelo embranqueceu, mas as velhas revistas seguem na cabeceira. As aventuras de Rodan para salvar a Terra ainda povoam seu mundo de teias de aranha. Quando é de noite, e todos dormem, ela sai pela rua a quebrar lâmpadas – única forma de ver o céu numa cidade feérica. Até ontem a acompanhava um garrafa de vodka, da boa. Por algum motivo desconhecido ela se acercara mais do que a pinga local. Talvez pela sonoridade. VOD-KA. Palavra doida, estranha, sensual.

Mas agora decidira. Por todos os deuses do Tahuantinsuyo. Não mais emborcaria o líquido quente e queimador. Haveria de saltitar pela rua como sempre fizera, mas o faria de cara. Já não tinha mais medo de não ser normal. Tomaria, como Raul, todos os banhos de chapéu. E falaria com os sleestaks, os vulcanos, encontraria mestre Ioda, voaria na Milenium Falcon. Cometeria todas as loucuras. Quem nesse mundo pode se arvorar em dizer o que é certo? Como podem impedir um ser de ouvir estrelas e dançar nas estradas de areia?

Nessa manhã ninguém estranhou quando ela saiu feito uma guerreira klingon, toda pintada. Deixara a casa arrumada, ajeitara o quintal. Na rua adormecida, jamais se poderia supor o caminho empreendido. Subiu devagar o morro do lampião, piou com os passarinhos, grunhiu com os bugios. Tomou banho de cachoeira e se deitou nua na relva verdinha. Decidiu esperar pelo raio. E ele veio, ao fim da tarde, quando as formigas já faziam caminho pelo corpo branquinho. Contam que ela foi levada por algum disco voador, e é bem possível. Nunca mais foi vista. O certo é que lá para os lados do lampião, há uma estranha árvore, com formas de mulher, que parece sorrir. Tem gente que jura que é ela e que em noites de lua clara, as bruxas cantam e dançam no lugar. Outros há que juram vê-la nas noites escurar a quebrar as lâmpadas, cantando canções sertanejas. Vai saber!...
 
Para conhecer mais:
Existe vida no Jornalismo
Blog da Elaine: www.eteia.blogspot.com
América Latina Livre - www.iela.ufsc.br
Desacato - www.desacato.info
Pobres & Nojentas - www.pobresenojentas.blogspot.com
Agencia Contestado de Noticias Populares - www.agecon.org.br
 
Salve, Elaine!

O Ritual e a Música dos Meninos

                   (Excertos do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006.)
                                 

Quanto ao ritual da Pachamanca, que os meus amigos conheceram naquele dia, há que dar maiores detalhes. Pachamanca, literalmente, quer dizer “onda de terra”, e representa o banquete dos Andes peruanos por excelência. Na cultura andina a comida está entrecruzada com o culto à Natureza e com as efemérides sociais. A Pachamama (ou Mãe-Terra) é fonte de fertilidade, de vida, e também fonte de numerosos produtos que voltam a ela para serem cozinhados. Tal ritual é feito principalmente em fevereiro e março, como celebração da colheita, mas fora aberta uma exceção para homenagear aos visitantes vestidos de negro que tinham vindo de tantas partes da América!
Sintetizando uma Pachamanca: se enterram no solo e se cozinham com pedras em brasa as diversas carnes: gado, porco, galinha, carneiro, cuey, e as verduras: batatas, batatas-doces, vagens, milho verde, junto com milho ao molho branco e queijo derretido. O sabor que a terra quente dá a esses produtos é realmente especial. Apesar de hoje se usarem carnes que foram trazidas para a América pelos espanhóis, a Pachamanca remonta à épocas pré-coloniais, e seu caráter ritual é uma forma de render homenagem à divindade Terra, comendo diretamente das suas entranhas os produtos que ela fecunda. A elaboração da Pachamanca demora horas e exige a participação de muitos membros da comunidade, homens e mulheres. Há uma ordem no enterramento das carnes, tubérculos e temperos, que são colocados sobre e sob as pedras em brasa protegidos por ervas úmidas e folhas de bananeira. Depois, se cobre a Pachamanca com terra, cuidando para que esteja hermeticamente fechada e não escape calor nem fumaça. Cobre-se a mesma, depois, com uma cruz de flores. [1] É uma grande honra ser recebido com uma Pachamanca, e imagino que os meus amigos entenderam a homenagem que lhes foi feita.
Nessa noite, quando andava por uma das calçadas do centro de Cusco, acabei dando de cara com seu Chico, Jaka e o Lobo. Eles tinham comprado casacos de lã de lhama e estavam a inaugurá-los, e acabamos rindo todos juntos, pois aqueles casacos só serviam para aquele clima. Aonde vivíamos dificilmente seria frio o suficiente para que se usassem tais bonitos casacos, que acabariam sua história num armário. Já que ríramos juntos fomos jantar juntos num elegante restaurante num segundo andar, bem na Praça de Armas de Cusco. Durante a refeição apareceu por lá um grupo de meninos músicos que era para a gente nunca mais esquecer. Eram cinco irmãos parecidíssimos, usando roupas típicas iguais, o que os tornava ainda mais parecidos. A diferença entre eles estava na idade – o mais velho estaria entrando pelos 12 anos, e o menorzinho só teria uns cinco. Todos eram bons músicos e tocavam seus instrumentos andinos como antigos antepassados deles devem ter tocado milhares de anos antes, inclusive usando roupas parecidas às que eles usavam agora, mas o menorzinho, aquele de uns cinco aninhos, roubava a cena. O menino era um artista nato, incorporava o que fazia, e o fazia tão bem que ficava-se com vontade de roubá-lo, traze-lo junto para amá-lo muito e muito por toda a vida! Os PHD e aquele grupo já se conheciam de viagens anteriores, e havia adesivos dos PHD nos seus instrumentos musicais. Era uma noite de paz e de emoção, e quando os meninos começaram a tocar uma nova música, e nos preparávamos para mergulhar no passado antigo da América através dela, Jaka e eu nos entreolhamos espantados e caímos na risada: aqueles meninos que eram como que um símbolo do Peru, de repente estavam tocando Obladi-Obladá, dos Beatles! É impressionante como as culturas se interpenetram e se mesclam neste mundo repleto de diversidades! Como historiadora, sei quantos estudos se fazem sobre tal tema – e estavam lá os meninos cusqueños a tocarem Obladi-Obladá com a naturalidade de meninos ingleses, testemunhando a cientificidade de coisas que eu lera em livros! Queridos meninos peruanos, não há como não guardá-los no coração para sempre!  


[1] Agradecemos aqui a colaboração do PHD Enrique Navarro, de Lima, Peru, que nos elucidou quanto aos detalhes da Pachamanca. (Nota da autora)

  Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

domingo, 6 de maio de 2012

sábado, 5 de maio de 2012

2

Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
“Paralelos que se encontram no infinito...”
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.

Pablo Neruda


quinta-feira, 3 de maio de 2012

CENTELHAS DE VIDA

Era uma vez, lá no Paraíso Terrestre, quando Deus criou Adão e Eva e todos os animais, criou Ele, também, um casal de cachorrinhos. Viviam todos, lá, muito felizes, e se não fosse a preocupação de Eva e Adão de provarem dos frutos da Árvore do Bem e do Mal, a festa lá ainda não teria acabado, e ninguém passaria nenhum tipo de privação neste mundo.
Bem, o fato é que lá, junto com Adão e Eva, havia um casal de cachorrinhos, e que enquanto Eva era tentada pela Serpente, os cachorrinhos, muito naturalmente, tiveram seus primeiros filhotes, que tiveram outros filhotes, que tiveram outros filhotes, até que um dia, milhares de anos depois, nasceram os dois cachorrinhos que vivem na rua do lado da minha casa.
Eu comecei a vê-los no começo deste inverno que está tão frio: dois cachorrinhos amarelos, dos mais legítimos vira-latas, a saírem para a entrada da rua, bem na minha esquina, para ficarem ao sol que chega antes na esquina do que na casa deles. Pequenas centelhas de vida explodindo de inteligência e alegria, eles sabem  exatamente a hora em que o sol chega a um pedaço quadrado de asfalto na saída da rua, e lá vêm, lépidos e alegres, a balançarem seus rabinhos na efusão gratuita de viver, para aproveitarem o calor fraco do sol e se aquecerem.
Como se divertem os dois bichinhos! Eles ainda são cachorrinhos muito novos, mal e mal deixaram de ser bebês, e a idade adulta deve vir só lá pelo verão. Estão naquela fase em que os cachorrinhos gostam de roer os chinelos das pessoas, e onde a alegria é infinita dentro dos corpinhos peludos e inquietos de tanta vida. Naquele quadrado de sol da esquina da minha rua, eles se aquecem com os focinhos erguidos, e brincam, alternadamente, brincam um com o outro tendo a certeza de que a coisa mais importante deste mundo é brincar. Eles conhecem todas as crianças da redondeza, e todas as crianças os conhecem – quando elas passam, cedinho, em direção da escola, eles interrompem suas brincadeiras para fazerem festa às crianças, e acompanham-nas um bom estirão pelas calçadas, até lembrarem-se que têm seu quadrado de sol no mundo, e voltarem à minha esquina.
Conhecem gente grande também: recentemente, quis saber mais sobre eles. Minha amiga Margarida contou-me que se chamam Toco e Bilú, e Margarida é uma mulher séria, tesoureira de um banco, o tipo de pessoa que a gente não pensa que sabe o nome de dois cachorrinhos de nada, duas centelhazinhas de vida que surgiram no começo do inverno num quadrado de sol. Depois que Margarida contou-me até o nome deles é que vi o quanto estão populares em toda a vizinhança.
Sabedora, agora, dos seus nomes, ontem de manhã fui lá falar com eles. O dia estava nublado, e o pedaço de sol não tinha aparecido na esquina. Os cachorrinhos, porém, sabiam perfeitamente onde ele iria surgir, se surgisse, estavam lá sentados,com cara de aborrecidos pela falta daquele amigo Sol que os tem aquecido desde que se lembram, na sua curta vida. Eles ainda não me conheciam – sempre os observo de longe, de dentro da garagem – e se mostraram indiferentes até que chamei:
– Toco!
Na hora descobri quem era Toco, pois ele veio pular em mim arrebentando de alegria, e foi só chamar “Bilú”, para que Bilú também entrasse num paroxismo de prazer e de pulos, ambos inteiramente cônscios da sua identidade neste mundo. Nasceram faz pouco tempo: da vida só conhecem o quadrado de sol e as crianças que passam, mas sabem muito bem como cada um se chama, e como ficam gratuitamente felizes quando um adulto se digna dar-lhe o pequeno nome que é quase tudo o que possuem!
Eles pularam e me lamberam até que eu tive de ir-me. Pelo retrovisor do carro, fiquei vendo como, depois da alegria de terem sido reconhecidos por um adulto, esqueceram-se de que o quadrado de sol não tinha vindo, naquele dia, e passaram a brincar com a mesma alegria de quando se sentiam aquecidos!
Se Adão e Eva não tivessem acabado comendo do fruto da Árvore do Bem e do Mal, cachorrinhos como Toco e Bilú nunca sentiriam frio, e nunca precisariam ficar brincando num quadrado de sol na esquina de uma rua, e não haveria na minha vida a luz das suas pequenas centelhas de vida. Até que Adão e Eva não erraram de todo!

Blumenau, 04 de agosto de 1996.
Urda Alice Klueger 
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sonhos

Nada além do que sinto
é o que quero
Nada além do que quero
é o que sinto

Não tenho a pretensão
de querer sentir o que não quero
e de querer o infinito...

Quero apenas querer
tudo aquilo que sonho
tudo aquilo que sinto

E não sonho
nada além do que sinto
e não quero
nada além do que sonho

Meus sonhos simples são
(como a vida é)

Simples
como os sonhos
que tive quando criança

E que
continuam presentes
nas reminiscências
do tempo

De um tempo
que tudo permite
e nada espera

Sinto
quero
quero e sinto

(sem demora)

Quero os sonhos
os sonhos que sinto

Do livro "Caminhos do Coração", 2000.

domingo, 22 de abril de 2012

Ainda

Ainda é possível sentir a alegria,
enxergar a vida em uma criança.

Por que, então, querer calar a sua voz
e eliminar a sua espontaneidade?

Desconhecemos os motivos,
mas facilmente agredimos uma criança.

A educação, porém, não pode ser a fórceps,
tem de ser um movimento natural e voluntário.

Afinal, emudecer o coração de uma criança
é o mais grave delito que se pode praticar.

E o calar a boca de uma criança
significa silenciar a vida.


Do livro "Educação Infantil no Tempo Presente" - São Paulo: editora Erica, 2002. 

Era...

Era...
O vento sul
A missa das oito
O almoço em família
O cheiro (ainda vivo) da carne de panela
O corpo mole
A visita à casa da vó
As ondinhas da praia de Barreiros – a maré cheia
O entardecer
A casa fechada
O sono
Outro dia
O tempo de criança
O bom na memória
Era tanto

Era tudo

Ficou

sábado, 21 de abril de 2012

Horizonte

Mãe, o que é que é o mar, Mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um mundo d´água sem fim, Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. Pois, Mãe, então mar é o que a gente tem saudade? - Guimarães Rosa


Tão longe, tão perto III

Capa: Foto Maria de Fátima Barreto Michels



O sítio República dos Autores está organizando a Coletânea “Tão longe, tão perto III”, com a previsão de fazer seu lançamento e a entrega dos livros aos participantes no início da segunda quinzena de julho 2012.
 
O livro será editado pela Editora e Gráfica COPIART, Tubarão-SC.
 
Nota: interessados em participar ainda desta produção terão até dia 05 de maio 2012 para fazer contato e enviar seus textos para o e-mail: jmachadolg@hotmail.com  onde serão informados os custos e detalhes.
 
J.Machado - Organizador
 

Coisas do Pântano IV

Pântano do Sul - Ilha de Santa Catarina


Embora estivessem no mesmo barco,
as maneiras de remar podiam perfeitamente ser diferentes.
Caio F. Abreu

Coisas do Pântano III

Pântano do Sul - Ilha de Santa Catarina

Coisas do Pântano II

Pântano do Sul - Ilha de Santa Catarina

Coisas do Pântano I

                   
Pântano do Sul - Ilha de Santa Catarina

quarta-feira, 18 de abril de 2012

IDA SOLENE A SACHSAYUHAMAN

(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006.)

     Eu precisava ir a Sachsayuhaman, meu, como precisava! Mas tinha que ir de outro jeito, no silêncio, sem motores de motos, com a solenidade que Sachsayuhaman pede, como o local mais sagrado das Américas para mim, e também o mais triste! Então, no outro dia, quando meus amigos embarcaram na programação do Encontro e viveram um dia muito engraçado pelo vale do rio Urubamba (o vale Sagrado dos Incas), onde, entre outras coisas comeram cuey[1] e conheceram o ritual da Pachamanca (conto depois), e de onde voltaram alegríssimos e bem dispostos, rindo muito dos acontecimentos do dia, eu comprei um pacote turístico e fui a Sachsayuhaman.  
     O que é Sachsayuhamann? É antiga fortaleza Inca onde, em 1533, houve a batalha final entre os Incas e Pizarro, o conquistador  espanhol, e a mudança de toda a História da América. Absolutamente imensa e linda, sobranceira a Cusco, numa subida de onde se controla o acesso à cidade dos Filhos do Sol, é outro dos pontos quase que indiscritíveis do mundo. Na verdade, trata-se de um conjunto de sítios arquológicos perfeitamente conservados apesar dos terremotos e dos cristãos, sendo que a fortaleza, construída em forma de raios celestes, imensa e poderosa, é a que mais me comove. Ali, um dia, no passado, os Filhos do Sol apostaram todas as suas fichas contra o invasor europeu ... e perderam. Como da vez anterior em que estivera ali, eu fiquei lá no alto da fortaleza observando o grande prado que há diante dela, e ouvindo na minha imaginação os ruídos daquela selvagem batalha tão trágica, os gritos dos homens que se feriam ou que estavam à morte, o ruído das armas de fogo, pois já as havia, inclusive canhões, o cheiro do sangue, da fumaça, dos corpos sujos dos espanhóis europeus que temiam o banho, o ruído das botas deles conquistando espaço fortaleza acima, os corpos que eram perfurados por espadas e que caíam – era muito triste e muito profundo estar naquele lugar, o lugar do câmbio da História de um mundo, e eu tinha muito claro dentro de mim a importância daquele ponto dentro do Universo. Afastei-me dos meus colegas de passeio e da guia que só falava abobrinhas e que só faltava jurar que eram os deuses astronautas, e fui até o ponto mais alto da fortaleza, que para mim era como o lugar central das Américas. Lá, sozinha, podia sentir toda a força das Américas e dizer para elas o que era importante para mim, e o fiz. Em nenhum outro ponto do mundo se poderia falar às Américas como ali – não era à toa que aquela era a fortaleza que guardava o Umbigo do Mundo!
     Um pouco adiante, em Tambomachay,o Banho do Inca, eu tive uma idéia que até agora me parece brilhante: tirei da bolsa a minha garrafa de água mineral, joguei a água mineral fora, e a enchi com a água sagrada que corre naquele lugar. Hoje, aquela água está na minha casa, cuidadosamente guardada junto com os livros e outras coisas que tenho que tratam de Arqueologia, e me sinto muito rica por tê-la. Todo esse complexo arqueológico que reúne Pisac, Qenqo, Pucapucara, etc., eu já descrevi, também, no meu livro “Entre condores e lhamas”, já citado anteriormente.
     Foi nesse passeio, nesse dia, que conheci Med Natália, uma professora russa da Universidade de São Petesburgo, que lá ensinava espanhol, e que também sabia falar português com o sotaque de Portugal. Fiquei impressionadíssima por conhecê-la, parecia-me estar a conhecer alguém saído de um romance de Tolstói. Ela, por sua vez, também parecia impressionada por estar conhecendo uma escritora brasileira – pelo menos declarou tal coisa uma série de vezes. De volta ao Brasil, mandei a ela um pacote com livros meus e de outros amigos – ela me contara que na Universidade de São Petesburgo havia livros de brasileiros, sim: Machado de Assis e Érico Veríssimo. Espero que tenha recebido os que mandei.
[1] Cuey = um certo ratão que é iguaria no Peru. Penso que é um parente do “porquinho da Índia”, ou o próprio. (Nota da Autora)


Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR


Salve, Urda!