O Espelho
Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília
Meireles.
No centro da
cidade, um homem chafurda na lixeira. Mexe e remexe o lixo – a procura. De quê?
Um homem na lixeira. Não é homem. É bicho. Quase um rato. As mãos nuas. Os pés
nus. O corpo sujo. A alma ainda é cândida? O homem olha em volta. Cidade vazia.
Noite de Natal. O homem está só – sempre esteve só. Não quer pensar na solidão.
Volta ao seu mundo – o lixo. O tempo passa. A vida mingua. O homem tem sede e fome.
Quer um cigarro. Mas não tem cigarro. Quer uma cachaça. Mas não tem cachaça. Há
apenas lixo. Onde os homens? Em casa – a família, o jantar, a troca de
presentes... A vida não é supérflua. O homem sente dor – corpo maltratado. Não
desiste. Procurar é preciso. A vida? Amputada – riso triste. No meio do lixo, o
homem. No centro do homem, Deus? O homem continua a sua saga – a fatalidade? Quase
desiste. Não desiste. Vasculha. Eterna busca – a vida. No meio do lixo, um
espelho. O seu presente de Natal? O homem sorri – quase vira criança. Pensa em
gritar – a felicidade. Mas não grita – a voz oca. O homem abandona a lixeira.
Olha em volta. Prédios, muitos prédios. Pessoas felizes? Senta-se no meio-fio. Limpa
o espelho – quase um carinho. O homem é doce. Onde a desigualdade social? Quer
se olhar no espelho. Reluta. Treme. Cadê a coragem? Ajeita o cabelo. Alisa a
barba. Cospe no chão. Olha-se no espelho. O reflexo – a consciência de si. Quase
não se reconhece. É o que vê – a essência? Ou é o que os outros veem – a aparência?
O homem desvia o olhar. E o que mira? A cidade morta. Almas mortas. Luzes
acesas – o Natal. Volta a se olhar no espelho. E o que vê? Uma criança. Uma
árvore de Natal. Uma família. Presentes pobres... Seu olhar preso ao espelho –
o passado. Lágrimas e risos – o delírio. Baixa a cabeça – pensamento vagabundo.
Pediu uma moedinha. A mulher não deu. Pediu pra lavar o carro. O homem não
deixou. O roubo – única opção? O homem escolhe – o destino. Passeia os olhos
pela noite. Ruas desertas. Cidade solitária. O homem teme o sonho – a vida? Volta
a se olhar no espelho. E não vê a criança refletida. E não vê o homem
refletido. Não mais existe? A realidade é nebulosa. O homem quebra o espelho –
a fúria. Estilhaços de uma vida. Cacos perdidos na calçada. Ergue-se. Leva o
saco às costas. Esboça um sorriso. Não parece o Papai Noel? O homem caminha –
passos tontos. Onde a saída? O homem atravessa a rua. Senta-se no banco da
praça. O relógio da igreja – meia-noite. Os sinos badalam. Uma pessoa passa.
Outra pessoa passa... O homem chora. E ninguém lhe deseja feliz Natal.
Às crianças, bom Natal!