sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Espelho


O Espelho


Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles.



No centro da cidade, um homem chafurda na lixeira. Mexe e remexe o lixo – a procura. De quê? Um homem na lixeira. Não é homem. É bicho. Quase um rato. As mãos nuas. Os pés nus. O corpo sujo. A alma ainda é cândida? O homem olha em volta. Cidade vazia. Noite de Natal. O homem está só – sempre esteve só. Não quer pensar na solidão. Volta ao seu mundo – o lixo. O tempo passa. A vida mingua. O homem tem sede e fome. Quer um cigarro. Mas não tem cigarro. Quer uma cachaça. Mas não tem cachaça. Há apenas lixo. Onde os homens? Em casa – a família, o jantar, a troca de presentes... A vida não é supérflua. O homem sente dor – corpo maltratado. Não desiste. Procurar é preciso. A vida? Amputada – riso triste. No meio do lixo, o homem. No centro do homem, Deus? O homem continua a sua saga – a fatalidade? Quase desiste. Não desiste. Vasculha. Eterna busca – a vida. No meio do lixo, um espelho. O seu presente de Natal? O homem sorri – quase vira criança. Pensa em gritar – a felicidade. Mas não grita – a voz oca. O homem abandona a lixeira. Olha em volta. Prédios, muitos prédios. Pessoas felizes? Senta-se no meio-fio. Limpa o espelho – quase um carinho. O homem é doce. Onde a desigualdade social? Quer se olhar no espelho. Reluta. Treme. Cadê a coragem? Ajeita o cabelo. Alisa a barba. Cospe no chão. Olha-se no espelho. O reflexo – a consciência de si. Quase não se reconhece. É o que vê – a essência? Ou é o que os outros veem – a aparência? O homem desvia o olhar. E o que mira? A cidade morta. Almas mortas. Luzes acesas – o Natal. Volta a se olhar no espelho. E o que vê? Uma criança. Uma árvore de Natal. Uma família. Presentes pobres... Seu olhar preso ao espelho – o passado. Lágrimas e risos – o delírio. Baixa a cabeça – pensamento vagabundo. Pediu uma moedinha. A mulher não deu. Pediu pra lavar o carro. O homem não deixou. O roubo – única opção? O homem escolhe – o destino. Passeia os olhos pela noite. Ruas desertas. Cidade solitária. O homem teme o sonho – a vida? Volta a se olhar no espelho. E não vê a criança refletida. E não vê o homem refletido. Não mais existe? A realidade é nebulosa. O homem quebra o espelho – a fúria. Estilhaços de uma vida. Cacos perdidos na calçada. Ergue-se. Leva o saco às costas. Esboça um sorriso. Não parece o Papai Noel? O homem caminha – passos tontos. Onde a saída? O homem atravessa a rua. Senta-se no banco da praça. O relógio da igreja – meia-noite. Os sinos badalam. Uma pessoa passa. Outra pessoa passa... O homem chora. E ninguém lhe deseja feliz Natal.

Às crianças, bom Natal! 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Era uma vez...


era uma vez um rapaz ....
depois, depois cresceu e diminuiu
que diria dele hoje o jovem de ontem?

António Cravo - Portugal

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Partir



António Cravo, Portugal.
 

partir, álvaro
partir sempre que destino
haverá onde
... uma praia um areal imenso
partir sem saber

um cais não é casa
é porta aberta
e eu vou sair

carta, álvaro
nem de prego quero
rotas muitas
destinos tantos
mar por todo o lado
isso sim

partir, álvaro
pura e simplesmente
partir
soltar amarras e
o que for
não há-de vir

um homem só morre
quando desistir

(praia de mira; barco de mar s.josé; companha do zé monteiro)

terça-feira, 11 de junho de 2013

De mim




palavra a palavra
caminho

sem outro desígnio
que passar

pudesse ouvir-me
o vento

seria demasiado
o ousar

A. Cravo - Portugal.

terça-feira, 7 de maio de 2013

o teu destino

vai até ao fundo
procura os porquês
... tu és a eterna questão
sê a pergunta
exige a resposta

não cales
não consintas
não aceites
não desistas
não deixes de ser

provoca a onda
quebra o silêncio
ergue-te ergue
provoca convoca
não és só mais um
exige a resposta

serenas são as águas
onde o espelho
se recria e a gaivota

olha-os e parte
que é diverso o teu destino
 
* Foto e Texto, António Cravo - Portugal.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

A Bagunça


A BAGUNÇA TODA... QUEM SABE

Subi seis lances de escada
até meu pequeno quarto mobiliado
abri a janela
e comecei a jogar fora
as tais coisas mais importantes na vida

Primeiro, a Verdade, ganindo como um dedo-duro:
“Não! Direi coisas terríveis de você!”
“Ah, é? Não tenho nada a esconder... FORA!”
Depois, Deus, assombrado, corado e choroso de espanto:
“Não é culpa minha! Não sou a causa de tudo isso!” “FORA!”
Depois o Amor, aliciando subornos: “Você não conhecerá a impotência!
As garotas da capa da Vogue, todas suas!”
Apertei sua bunda gorda e gritei:
“Seu destino é um desvalido!”
Peguei a Fé, a Esperança e a Caridade
as três juntas abraçadas:
“Você não vai sobreviver sem nós!”
“Estou pirando com vocês! Tchau!”

Depois a Beleza... Ah, a Beleza –
Tão logo a levei até a janela
disse: “Você eu amei mais na vida
... mas é uma assassina; a Beleza mata!”
Sem querer realmente atirá-la
desci correndo as escadas
chegando a tempo de apanhá-la
“Você me salvou!” sussurrou
Coloquei-a no chão e disse: “Anda.”

Subi de volta as escadas
procurei o dinheiro
não havia dinheiro pra jogar fora.
Só restava a Morte no quarto
escondida atrás da pia da cozinha:
“Não sou real!” gritou
“Não passo de um rumor espalhado pela vida...”
Atirei-a fora com a pia e tudo, sorrindo
e então notei que o Humor
era tudo que havia restado –
Tudo que pude fazer com o Humor foi dizer:
“A janela fora com a janela!”

poema: Gregory Corso
tradução: Márcio Simões

The Birds


The birds flew around for nothing but the hell of it - in "An Expensive Place to Die", de Len Deighton.

A Recusa



António Cravo - Portugal

Fabricamos o tempo
o nosso tempo
com a música dos gestos
suspensos
no exacto instante em que
vindos do silêncio onde habitavam
... nos cercearam as vozes

somos ainda o haver amanhã
um dia de sol aberto a todos
não o impossível sonhado
mas o real a que estamos condenados
pelo facto de sermos

estamos
ali onde palavra e gesto se confundem
não temos medos nem donos
mais muitos mais
crescemos a cada dia

somos a afirmação da recusa

PS: Palavras que tocam devem ser partilhadas, sempre. Valeu, Cravo.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

De Portugal, a crítica.


Por António Cravo:
 
7 de abril de 2013
afeganistão
11 crianças morrem
vítimas de ataque aéreo norte-americano
notícias poucas
o que aconteceu:
... “erro”
em seguida
silêncio

16 de abril de 2013
boston
1 criança e 2 adultos morrem
vitimas de explosões de bombas artesanais
notícias abonde
o que aconteceu:
“terrorismo”
em seguida
alarme geral no “ocidente”

dirás:
onde a poesia aqui?

dir-te-ei:
na denúncia da hipocrisia

não há poesia no assassínio
como não há poesia no manipular da vida
11 crianças afegãs morrem por erro
1 criança e 2 adultos americanos são vítimas de terrorismo
é esta a mensagem vendida ao mundo

queria dizer-te
algo muito simples
e fácil de entender:
perderam-se 14 vidas humanas
das quais 12 eram crianças
e todas
mas todas
vítimas de “terrorismo”
dignas do mesmo tratamento

não
aqui não há poesia
há amargura

que mais poderia haver?

(Afghanistan

The lifeless bodies of Afghan children lay on the ground before their funeral ceremony, after a NATO airstrike killed several Afghan civilians, including ten children during a fierce gun battle with Taliban militants in Shultan, Shigal district, Kunar, eastern Afghanistan, Sunday, April 7, 2013. The U.S.-led coalition confirms that airstrikes were called in by international forces during the Afghan-led operation in a remote area of Kunar province near the Pakistan border. (AP Photo/Naimatullah Karyab) AP).
 

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Da Existência

Existe apenas uma única coisa que vale a pena: viver bem e alegremente a própria vida - W. Reich.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Intervalo

Porque entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos - e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo recobre, tudo apaga, tudo torna simples e tão indiferente - Lya Luft

Sem Nome

No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro aqui ou em qualquer outro lugar. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem aquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter nome algum. Então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado - Eduardo Galeano.

A Ilusão do Movimento

Eu sei que vou. Insisto na caminhada. O que não dá é pra ficar parado. Se amanhã o que eu sonhei não for bem aquilo, eu tiro um arco-íris da cartola. E refaço. Colo. Pinto e bordo. Porque a força de dentro é maior. Maior que todo mal que existe no mundo. Maior que todos os ventos contrários. É maior porque é do bem. E nisso, sim, acredito até o fim. O destino da felicidade, me foi traçado no berço - Caio F Abreu.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Brumas

Depois, muito depois, foi que começou a dar conta de si, como se voltasse de um mundo de brumas, como se acordasse de um sono pesado, despovoado de sonhos - Autran Dourado. 

*Imagem sem tratamento.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Entendimento

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo - Clarice Lispector.

Bento ou Benedito?

(Como as coisas se passaram quando o papa foi eleito. Reencaminhado por pertinência do momento. Urda)

                                   Quando eu era criança, eu via que o Brasil era como era. Depois cresci e li Gilberto Freire e seu entusiasmo, e passei a crer que vivíamos, mesmo, numa democracia étnica. Daí cresci mais e vivi mais, e fui vendo que a coisa não era bem assim, e veio Darcy Ribeiro e outros me acenando com o outro lado da moeda, mas mesmo assim eu acho que não estava nada preparada para o ato explícito de racismo institucionalizado ao qual assisti nesta semana.
                                   Vejamos: eu liguei a televisão bem na horinha em que começou a sair uma primeira fumacinha lá na chaminé da capela Sistina, ainda fumaça tão tênue que não se definia a cor – e logo a fumaça ficou branca!  Era hora do Jornal “Hoje”, e a expressão “Habemus Papa” passou a estar na boca de todos, seguida da grande curiosidade: “Quem é, quem é?”. Então, nos trinta ou quarenta minutos seguintes as coisas se definiram: havia sido escolhido o alemão Joseph Ratzinger, e isto é assunto para outra discussão, e que discussão! Mas o que nos interessa, neste momento, é que quando se soube quem era o Papa, ele já havia escolhido seu nome de Papa, e o Jornal Hoje já estava devidamente calçado com a presença de um teólogo da USP, que clareava o que não se sabia.  Soube-se, então, que o nome que o Papa escolhera significava “Abençoado”, e o teólogo foi taxativo: tanto em italiano, quanto em português, “Abençoado” significava “Benedito”, ou “Bento”. Então não havia dúvidas: Habemus Papa Benedito, XVI, para se ser mais exato, pois outros 15 Beneditos já houvera.
                                   Por uns 30 minutos, no Brasil, tivemos o Papa Benedito XVI. O Jornal Hoje se estendia sem pressa, e o teólogo da USP explicava tudo que se queria saber, tintim-por-tintim, quando de repente, uma meia hora depois, o nome do Papa passou para Bento. Eu cá estranhei: aquilo tinha cheiro de racismo! Lembrei-me de São Benedito, santo preto muito popular no Brasil, padroeiro das gentes negras – será que uma coisa não estava tendo a ver com a outra? Passei uma mensagem para uma amiga antropóloga na Alemanha, grande conhecedora de Brasil, contando o que acontecia, e ela me respondeu: “Aqui ele é Benedikt. Eu acho que é racismo, sim!” Expus o caso para minha faxineira, que passava roupa e espiava a televisão ao mesmo tempo: “O que tu achas?” – Ela foi taxativa: “Bento fica melhor, tu não estás vendo? Benedito é nome di nego!” . Eram opiniões de áreas extremas: ia desde uma doutora em Antropologia até minha pouco alfabelizada faxineira, passando pela humilde escriba que sou. Telefonei para minha mãe e expus o caso – ela achava melhor não mexer com tais coisas. Então, só restava esperar. E esperei.
                                   Nas horas seguintes, nos dias seguintes, fui vendo que a exclusividade do nome Bento pertencia ao Brasil (e agora descobri que a Portugal também). Na língua espanhola o papa é Benedicto; na língua alemã é Benedikt – na verdade, não pesquisei em muitos países, pois já conheço um bocado este Brasil onde “Benedito é nome di nego”, e posso entender este racismo que assola a minha gente, sob a capa de uma democracia étnica. E Portugal, bem ... se um dia fomos no embalo de Portugal, penso que hoje Portugal muito nos copia – basta ver o gosto dos portugueses pelas nossas novelas!
                                   Taí o que queria falar. Se “Abençoado” , no Brasil, quer dizer Bento, e não Benedito, acho que São Benedito e nossos irmãos negros  têm muito a ver com a coisa. Se na nossa língua não se aceita ter um Papa Benedito, eu acho que tem a ver com o mais descarado racismo, sim. Gilberto Freire que me perdoe, mas a tal democracia étnica está fazendo água.

                                   Blumenau, 23 de abril de 2005.


                                               Urda Alice Klueger
                                               Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

A Ilha

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Cais

Não é a toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa; meu caminho não sou eu, é o outro, são os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro, estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada - Clarice Lispector. 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Incerteza

Vou te pedir que fique. Mesmo que o futuro seja de incertezas, mesmo que não haja nada duradouro prescrito pra gente. Esse é um pedido egoísta, porque na verdade eu sei que se nada der realmente certo, vou ficar sem chão. Mas por outro lado, posso te fazer feliz também. É um risco. Eu pulo, se você me der a mão - Caio Fernando Abreu.

Tempestade

Aos olhos nus, não passava de um chuva repentina, mas aqui dentro soava como uma tempestade -
Clarice Lispector.

Equilíbrio*

No misterio do sem-fim equilibra-se um planeta. E no planeta um jardim e no jardim um canteiro no canteiro uma violeta e sobre ela o dia inteiro entre o planeta e o sem-fim a asa de uma borboleta - Cecília Meireles.
*Da série Dom de Voar.

Nomes*

Muita coisa importante falta nome - Guimarães Rosa.
* Da série Nomes que Navegam.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

A Distância

É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática - P. Freire. 

Erros

Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente - Clarice Lispector

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

TEMPOS CONTURBADOS 5

                                        Afinal!     

                                        Autoria: Urda Alice Klueger

                                        (Parte do livro "Meu cachorro Atahualpa, publicado em 2010)


          Era 30 de maio quando minha mãe faleceu, e eu me sentia tão cansada, tão estressada, que não sabia como é que a vida iria continuar. Havia muitos amigos e muitos primos me dando arrimo, mas não sei como teria sido sem o meu cachorrinho. Lembro-me como, no dia da missa de sétimo dia da minha mãe, minha querida Neide apareceu e ficou decididamente ao meu lado, me apoiando, e depois foi me fazer uma visita – meu apartamento estava bastante desarrumado, eu diria que quase caótico, mas aquilo já não me importava muito – eu estava em estado de despedida dele.                                   
        Junho passou-se inteiro sem que os negócios se decidissem. Andava muito ocupada resolvendo os problemas de papéis, contas, etc., que acontecem depois do falecimento de uma pessoa, mas o tempo todo muito ansiosa pela minha casinha que ainda não tinha sido vendida, torcendo para que ninguém a comprasse antes de mim, e tendo longas conversas com Atahualpa de como seria nossa vida nela, continuando a prometer-lhe uma casinha com seu próprio jardim e, solidário, meu cachorrinho parecia entender tudo, e me acarinhava e me lambia quando eu chorava de exaustão, e depois brincava comigo pela casa toda, correndo atrás de uma bola ou do pano velho que eu arrastava, e eu sempre tirava tempo para que fizéssemos longas caminhadas pelas ruas que imaginava livres de cobras venenosas, e dormíamos e acordávamos juntos, e o mês era frio, chuvoso e triste, e teria sido muito mais difícil sem Atahualpa.                                  
        Em julho, Atahualpa e eu tiramos uma semana de férias e fomos passá-la no Pouso e Poesia (WWW.sambaqui.com.br/pousodapoesia), pousada do meu amigo Raul Longo e da Ida, lá na praia do Sambaqui, em Florianópolis.  Era a terceira vez que Atahualpa via o mar (já o vira na Praia de Estaleiro e em Porto Belo), só que dessa vez ele tinha uma companhia canina: a Canela, cachorrona extremamente livre do meu amigo Raul.                                  
       Até chegar lá, eu não sabia que estava tão cansada – desmoronei ao pisar no Pouso e Poesia. Acabou sendo uma semana idílica, onde Atahualpa, Canela e eu fazíamos longos passeios à beira mar pelas manhãs, dormíamos nas tardes e eu fiz todas as refeições no bar do seu Antônio, comendo sempre tainha frita com pirão branco ou dúzias de ostras que viviam num engradado dentro do mar, sob o restaurante, e que o seu Antônio recolhia com a ajuda de uma corda, a cada vez em que alguém pedia ostras frescas.                                  
      Fazia tanto tempo que não escrevia algo que não fosse triste e angustiante que havia perdido o jeito, mas conforme os dias iam passando, criei umas poucas crônicas que o Raul achou ótimas, mas que eu sabia que não estavam nada boas. Como sempre, Atahualpa e eu dormíamos um perto do outro, no mesmo apartamento, e depois do sono das tardes, íamos de novo passear na praia. Há muitas coisas para contar daqueles dias e daqueles passeios com Canela – renderão, com certeza, muitas crônicas futuras. O que não saía da minha cabeça, no entanto, era a promessa que continuava fazendo ao meu cachorro, de que iríamos ter uma casinha com jardinzinho para ele, e torcia com todas as forças para que os negócios imobiliários, em Blumenau, se concretizassem enquanto estávamos fora.                                  
      Mais rápido do que parecia, a semana se passou e voltamos – para descobrir que continuávamos na mesma situação. Dias depois, no entanto, os negócios aconteceram, e houve um domingo à tarde em que juntei todos os grandes lençóis e colchas que tinha, e tirei todas as roupas dos armários fazendo com elas grandes trouxas, pois íamos nos mudar. Para um cachorrinho que vivera naquele apartamento desde que se lembrava, e o sabia de certa forma, aquelas alterações deveriam estar parecendo o caos, e Atahualpa farejava as grandes trouxas angustiadamente, me olhando de esguelha como quem pergunta:                                  
       - Nossa vida virou de cabeça para baixo de novo? O que está acontecendo?                                  
      O que estava acontecendo ele não entendera bem quando eu explicara: na noite do dia em que eu assinara a documentação da venda do apartamento e da compra da casa, enquanto voltávamos para casa na escuridão fria e chuvosa de julho, eu contara tudo direitinho a ele:                                  
       - Atahualpa, nunca mais, nunca mais vamos ter que viver naquele lugar horrendo! Nunca mais vamos ver aquelas casas que ainda não despencaram do morro, nem ter medo de passar na rua em dia de chuva, temendo que elas venham a cair sobre a gente! Nunca mais vamos ter medo de que o nosso prédio venha a ser abalado por aquela casa que pode vir a cair a qualquer momento! Vamos para o paraíso, e vais ter teu jardinzinho e a tua varanda, e vamos ser felizes – e eu chorava muito e muito de tanta dor incontida, enquanto lhe explicava tais coisas, pois mesmo para mim parecia estar vivendo uma irrealidade, que coisas tão boas não poderiam estar acontecendo realmente, de tão boas que eram. Era um choro de grande alívio, de mágoas acumuladas, de angústias somadas e de felicidade ao mesmo tempo. Atahualpa se aconchegou a mim e apertou minha perna com o seu queixo, tentando me consolar, mas não deve ter entendido tudo, pois estava bastante inseguro e surpreso com aquelas grandes trouxas amontoadas na sala daquele apartamento que, de repente, ficava de cabeça para baixo.                                   
        Na manhã seguinte, tão logo os homens da mudança chegaram, levando poucas coisas numa mala e numa sacola, eu e ele nos mudamos, de novo, para aquele depósito de livros onde passáramos o verão, esperando uns poucos dias até que nossa mudança fosse ajeitada.                                  
        E a 31 de julho de 2009, enfim, pegamos nossas poucas bagagens e nos mudamos definitivamente para nossa casinha nova. Era tempo de sermos felizes!


"Eu me dei conta de que cada vez que um dos meus cachorros parte, ele leva um pedaço do meu coração com ele. Cada vez que um cachorro novo entra na minha vida, ele me abençoa com um pedaço de seu coração. Se eu viver uma vida bem longa, com sorte, todas as partes do meu coração serão de cachorro, então eu me tornarei tão generoso e cheio de amor como eles."  (Autor desconhecido)

A Linha

Às vezes escrever uma só linha basta para salvar o próprio coração - Clarice Lispector

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O Valor da Literatura

     Quando lancei Gurita, romance ambientado em Barreiros, São José/SC, algumas pessoas me perguntaram se era lucrativo escrever. Eu já havia publicado outro livro, na área da educação, e chegara a ganhar alguns trocados, a título de direitos autorais. Mas daí a dizer que escrever é um negócio lucrativo havia uma grande distância. Para não deixar de responder aos meus interlocutores, falava a eles que não dependo da literatura para viver; que escrevo de maneira amadora e, como tal, tenho uma relação de amor e ódio com as palavras.  
     Para além da vaidade pessoal, publicar Gurita, assim como Desenho a Giz, meu mais recente trabalho, significava divulgar e registrar um pouco da cultura de São José da Terra Firme, ricamente influenciada pelos açorianos que aqui desembarcaram, em 1750. Daí o meu cuidado em mostrar nos diálogos das personagens o falar característico da gente daqui; em detalhar a leveza da arte de tarrafear; em citar os mais variados artigos de pesca (puçás, jererés, feiticeiras etc.); em lembrar os engenhos de farinha e os carros de boi; em destacar, na pele de dona Idalina, o poder das rezas e da medicina não alopática das pessoas simples da região. E, embora não seja bairrista, eu não enxergava outro ambiente para o romance que não fosse o distrito de Barreiros.
     Qualquer leitor mediano seguramente está mais familiarizado com os aspectos históricos do Rio de Janeiro evocados por Machado de Assis do que, por exemplo, com a formação social e econômica da Ilha de Santa Catarina. Pessoas que nasceram e se criaram em Barreiros – aliás, após a leitura de Gurita, vieram me dizer que cresceram de costas para o mar – não sabiam a localização dessa imponente pedra. Cantando, então, a minha aldeia, como queria Tolstoi, minhas personagens, que nunca ouviram falar de Rua do Ouvidor ou de Mata-cavalos, caminharam pelas ruas da minha infância: a Leoberto Leal, a Santo Antonio, a José Victor da Rosa, a Antônio Schroeder...
     Deixando de lado esses aspectos puramente sentimentais, acredito que Gurita, além de resgatar parte da História de São José, também deu voz àqueles que julgam não tê-la. E, assim, deparamo-nos com o valor de qualquer arte literária: fazer o leitor tomar consciência de si mesmo, despertando-o para o mundo que o cerca e, num movimento estritamente dialético, transformando-o.
     A partir, portanto, de um microcosmo, demonstrei o quão difícil é vivermos em sociedade. Pois como escrevi no prólogo de Gurita, a existência humana continua sendo idealizada; paira no inconsciente coletivo que as verdadeiras e mais belas biografias só podem ser escritas acerca daqueles que descendem de uma estirpe nobre. Consequentemente, as histórias construídas no dia a dia por personagens desconhecidas acabam sendo ridicularizadas e desprezadas. Soa estranho que tais anônimos ainda não tenham percebido que carregam consigo uma história de vida e que esta é parte integrante da humanidade. É, contudo, um comportamento perfeitamente compreensível. Lembrando Goethe, poeta alemão, qual é a coisa mais difícil que existe? A que parece mais fácil aos seus olhos ver: aquilo que está diante de seu nariz.

Artigo publicado no caderno Continente, do Jornal Diário Catarinense, de 18/01/2013