sábado, 3 de março de 2012

Retalhos do Cotidiano

“Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar.”
Drummond


Quando Alfredo tentou colocar a pasta na estante não conseguiu. Tremeu, hesitou e depositou-a sobre a mesa. Havia vinte e sete anos que fazia esse movimento: erguer a pasta e colocá-la na estante. Conhecia de cor o local de cada uma. Às vezes, fechava os olhos e, sem titubear, punha a pasta no lugar apropriado – e se orgulhava disso. Esquisito, porém, era o que sentira naquele momento. Jamais havia acontecido algo parecido. Jamais tivera qualquer motivo para faltar ao serviço – e isso também o deixava assaz orgulhoso. Costumava dizer que, hoje em dia, as pessoas faltam por qualquer motivo. E ele, mesmo quando o filho estivera internado no hospital por quase quinze dias, nunca deixara de bater o ponto. Era verdade. Tinha uma folha funcional exemplar. Cumpria o seu horário rigorosamente, sendo o último a sair da repartição. Ainda que não ocupasse nenhum cargo de chefia, sentia-se bem em apagar as luzes e verificar se todos os computadores e impressoras estavam desligados. Não encontrava, portanto, motivos para a sua síncope. Suas pernas pareciam não querer obedecer, e em sua fronte escorria um suor gélido. Sentou-se. Consultou o relógio. Ainda faltavam vinte minutos para as dezoito horas. Estava, porém, sozinho na sala. Todos já haviam abandonado o local de trabalho. Caso precisasse de ajuda, não haveria ninguém para socorrê-lo. E, pela primeira vez na vida, sentiu-se só. Teve um profundo medo. De quê? Não sabia. Estava amedrontado, simplesmente. Acaso morresse ali, naquele momento, quem iria sentia a sua falta? A mulher que fazia a limpeza, talvez; o vigia, seguramente. Os seus colegas, não obstante, somente notariam a sua ausência no dia seguinte. Era possível, até, que demorasse mais tempo para a sua ausência ser percebida. E convenceu-se de que eles não iriam se preocupar com ele. Outros assuntos ocupavam a mente daquelas pessoas – o futebol, a religião, a política... Alfredo, ao contrário, se preocupava em numerar e arquivar as correspondências oficiais. Era a sua única ocupação. Nunca aspirara crescer na repartição e, mesmo se quisesse, não teria quem pudesse indicá-lo. Pensou, então, que sua história teria sido diferente se tivesse tomado mais decisões, se tivesse falado o que realmente sentia. E, quem sabe, Marília... O tremor, agora, era mais intenso. Num estado de torpor e alucinação, sentiu que a vida cobrava as ações que ele, por comodismo e covardia, havia evitado tomar. Sempre ficara à sombra. Nunca tomara uma iniciativa; jamais dissera um não; nunca incomodara ninguém; jamais discordara de seus colegas... Baixava a cabeça e procurava realizar as tarefas da melhor maneira possível. Tudo para que não fosse repreendido. Temia que chamassem a sua atenção. Alegava que quem tinha o direito de dizer o que era certo ou errado eram os seus superiores. Notou algo estranho nessa palavra. E a escandiu: su-pe-ri-o-res. Em que eram melhores? Também não sabia. Nunca procurara saber. Parecia que era tarde para descobrir ou consertar alguma coisa. Ficou impaciente. Ergueu-se. Foi à janela. Oitavo andar. O movimento na rua havia aumentado. Todos terminavam o expediente e se dirigiam para casa ou conversavam com os amigos. Ele estava só. Tinha o seu filho, é certo. Mas ele estava longe, cursava o segundo ano de Direito. Na verdade, Alfredo sempre sonhou em ser advogado. Mas jamais teve vontade suficiente para transpor as barreiras da inércia e ingressar na faculdade. Procurava realizar-se através de seu filho. Divagava... Seu filho iria casar-se, teria filhos e sua mulher... Interrompeu o pensamento. Algo havia chamado a sua atenção. Na janela defronte, duas mulheres se acariciavam. E isso o fez lembrar do dia em que conheceu Marília. Foi durante o baile de carnaval. Era a última noite, e ela já a havia percebido desde a primeira. Não tinha, porém, coragem para se aproximar. A iniciativa foi dela. Marília o agarrou e o puxou para o meio do salão. Mas não foram além disso. Ele ficou de ligar para ela, mas não se aventurou. Marília, então, depois do terceiro dia ser ter notícias, ligou para ele. A partir desse dia, não mais deixaram de se encontrar. Casaram-se – embora o carnaval fosse a única coisa comum entre ambos. E as brigas não demoraram muito para aparecer, sobretudo quando Gabriel, o único filho do casal, nasceu. Marília, que até então desejava muito aquela criança, passara a ignorá-la. Foi além. Começou a agredi-la com bastante frequência. No início, Alfredo pensou que fosse apenas insegurança da parte dela. Jamais percebera que o mau humor de Marília era reflexo de uma relação que, cada vez mais, ficava desgastada. Até que... Alfredo, mais uma vez, não prosseguiu com o pensamento. Evitava se lembrar desses detalhes. As duas mulheres continuavam abraçadas. Fechou a janela. Em cima da mesa, o perfurador de papéis, o grampeador, a caneta, papéis... A pasta. Não teve vontade de guardá-la; faria isso no dia seguinte. Sentia-se cansado. E olhou em volta. A sala vazia. Solidão. Vestiu o paletó e virou-se para sair. Antes, porém, certificou-se de que tudo estava em ordem, que poderia ir tranquilo. Nesse momento, pensou que nada daquilo tinha importância. Quem ligaria para uma lâmpada deixada acesa? Quem perderia o sono se a porta tivesse ficado apenas encostada? E foi o que fez. Pela primeira vez não fecharia a porta. E foi invadido pela sensação de estar transgredindo uma regra – e nem mesmo suspeitou de que essa lei fora imposta por ele mesmo. O silêncio era sepulcral. Entrou no elevador e ficou olhando-se no espelho. Apesar de seus cinquenta e sete anos, tinha poucos cabelos brancos. O seu olhar fatigado é que lhe dava uma idade mais avançada. Ao sair do elevador, não viu (ou fingiu não ver) o porteiro. Atravessou a imensa galeria e ganhou a rua. O movimento havia acalmado um pouco. Mesmo assim, as pessoas deixavam Alfredo incomodado. Era um entardecer típico de outono. Se ele soubesse apreciar, teria visto o desperdício de tintas no céu. Lera em algum lugar essa frase. Esquecera-a, porém. Naquele momento, apenas as sua reminiscências interessavam. E, no meio da multidão, teve a impressão de ver Marília. Diminuiu o passo. Parou. Um transeunte chegou a reclamar. Ele não se aborreceu. A sensação, aos poucos, foi-se desvanecendo. Era uma mulher mediana, de cabelos negros e encrespados. Lembrava a ex-mulher, é verdade. As semelhanças, todavia, não iam além dessas características comuns a tantas mulheres. Prosseguiu o seu caminho. Um mendigo pediu uma esmola. Alfredo o ignorou. Seguiu adiante. Um grupo de crianças vinha da escola. Faziam uma imensa algazarra. Diante delas, teve vontade de rir, mas manteve o compasso. E lembrou-se do tempo em que costumava ir à missa. A ladainha do padre... As palavras de Cristo: o reino dos céus é das crianças. Sabia ele de que reino se tratava? Ele desconhecia qualquer paraíso. Entendia apenas de ofícios, memorandos, carimbos e despachos. Nunca tivera uma grande alegria. Sempre comedido, nem mesmo quando o filho nascera sentira-se feliz. No mais, seguia a sua pacata vidinha; tinha outras preocupações. Viver não era tarefa fácil, ainda mais para um homem que trabalhava no setor de arquivo de uma repartição pública. Absorto nesses pensamentos, embarcou no ônibus. Não demoraria muito e logo estaria em casa, em seu refúgio. Não obstante, um acidente fez com que o trânsito ficasse lento. Nada de grave. E ainda viu a equipe de resgate socorrendo a vítima. Pensou que nunca ajudara ninguém. Mas não demonstrou arrependimento. Era um burocrata, e apenas vivera para obedecer a ordens. Certamente, teria socorrido alguém, desde que dissessem para ele fazer isso. Como, porém, ficara sempre trancado no escritório, nunca soube o que acontecia com o mundo lá fora. Assistia TV e raramente lia jornais. Mas tudo era tão superficial que pouco conseguia reter. Mesmo as imagens mais fortes eram logo esquecidas. O trânsito seguiu lento. Alfredo sentiu-se desconfortável. Quis sair dali; nenhum movimento esboçou, porém. Estava acostumado demais com aquele trajeto para tomar alguma iniciativa. Quando deu por si, estava próximo à sua parada. Levantou-se. Puxou a sineta e desceu uma quadra antes do ponto mais perto de sua casa. Queria andar, sentir o vento acariciar os seus cabelos e renovar o ar opresso em seus pulmões. Após quinze minutos de caminhada, sentiu-se melhor. Maquinalmente abriu o portão e verificou a caixa de correspondência. Estava vazia – havia muito que não recebia uma carta. O elevador parecia enguiçado, demorou a chegar. Entrou, apertou o número quinze e, finalmente, em casa.


Ao fechar a porta, impossível para Alfredo não recordar do tempo em que ainda era casado. Sempre que ouvia a chave na fechadura, Gabriel corria para recebê-lo. Alfredo, então, fingindo surpresa, limitava-se a dar dois tapinhas na cabeça do garoto. Não recobrava as energias gastas com um cotidiano tão mesquinho. E pensava que a vida era assim mesmo. Não havia outro jeito senão aceitá-la como ela vinha. Não ficava triste. Ao contrário, temia tecer qualquer crítica ao seu dia-a-dia. Deus poderia castigá-lo. A vida era assim mesmo, e pronto! Nada poderia fazer... E realmente nada fez. Como mero espectador, não procurou alterá-la. Era de uma passividade extremada. Até mesmo com Marília. Esta, sempre que podia, cobrava alguma iniciativa, embora ela estivesse tão estagnada quanto ele. Marília não observava o seu próprio umbigo. Preferia reclamar da vida, ou melhor, culpar Alfredo era mais cômodo. Logicamente, os ânimos ficavam acirrados. Houve, é certo, dias em que ele pensou em retardar a sua chegada em casa. Queria evitar conflitos. Mas como? Sem amigos, para onde iria? Não adiantava. Por mais que se esforçasse, retornava antes mesmo do horário habitual. E, parafraseando o Chico, calava-se com a boca cheia de feijão. Ao fechar a porta, todo o seu passado desabava em sua cabeça. Queria esquece-lo, mas era dificílimo. Morava ainda no mesmo apartamento. Nem mesmo alterou a disposição dos móveis. De tal forma que onde se sentasse ou ficasse teria a sensação de que o tempo não passara e que Marília... Bem, não era verdade. Estavam separados, e seu filho Gabriel era estudante de Direito. Sabia disso, mas o pensamento não ajudava. Abriu a janela. Olhou para baixo e viu que as pessoas estavam pequenas, e que nada poderiam fazer contra ele naquele momento. Estava seguro ali. Era o seu abrigo, apesar das lembranças que o atormentavam. Foi ao banheiro. Pensou em tomar banho, desistiu. Despiu-se. Colocou o roupão, tinha vergonha de sua nudez. Marília sempre soube disso. No início ela fora muito carinhosa. Era possível – várias vezes pensou nisso – que ela tivesse conhecido outros homens antes dele. No entanto, jamais teve coragem de perguntar alguma coisa a esse respeito. No fundo, embora não soubesse expressar, gostava do jeito que ela o acariciava. Inevitavelmente, com o tempo, Marília foi se tornando mais distante, mais fria. E Alfredo acabou ficando de lado. Deitava-se, ficava esperando que ela o abraçasse. A espera era em vão. Fora um tolo. Agora tinha certeza. Devia ter sido mais exigente; devia ter tomada mais iniciativas; devia... Sim, sempre soube disso, mas nunca teve coragem. Adiava as decisões. Deixava para amanhã. E o amanhã nunca chegava. Quer dizer, chegara, sim. Veio com tanta força que ele nem teve tempo para se proteger. Aliás, vivera o tempo todo desejando a segurança. E o que encontrou? As vicissitudes da vida. O seu destino estava sendo traçado havia muito tempo. Mas Alfredo pensava que, de uma hora para outra, poderia reverter a situação. Ledo engano. Estava como uma criança sem a sua mãe. Precisa chorar, falar com alguém. Pensou em gritar. Mas os vizinhos certamente iriam reclamar. Calou-se. Tomou um gole de água. Estava sem fome. Se comesse alguma coisa vomitaria. E lembrou-se do dia em que dera uma surra em Gabriel. Alfredo havia acabado de colocar na sala o novo tapete que Marília tanto insistiu para que comprasse. Após a aula, depois de um dia de muita chuva, o menino entrou correndo com os pés todo sujo de lama e passou em cima do tapete. O garoto ficou assustado. Teve medo. Chorou e pediu desculpas. Não era nele, porém, que Alfredo batia. A sua raiva era para Marília. Não sabia disso, é verdade. Valia-se, então, da autoridade de pai para culpar Gabriel por um erro que era somente dele mesmo, e que não sabia como resolver. Depois desse incidente, o garoto não mais apanhou chuva e não mais brincou sobre o tapete. Alfredo também nunca mais lhe bateu, mas o estrago já havia sido feito. E cada vez que olhava para Gabriel, parecia que ele queria revidar a surra. Este foi o motivo para a grande barreira que se ergueu entre os dois. Quando soube que o filho passara no vestibular, ficou contente e quis abraçá-lo. Mas não conseguiu nem mesmo lhe dar os parabéns. Sem saber o que dizer, o filho sorriu e foi comemorar com alguns amigos. O que ficou entre os dois foi o silêncio. Aliás, entre os três uma enorme muralha se levantou. Nada mais poderia ser feito. Alfredo se conformara, e lhe doía o coração. Se ao menos tivesse o seu filho... Poderia ligar e falar com ele, pedir ajuda. Pegou o telefonem, digitou quatro números e desligou. Não teve coragem. Era seu filho, mas eram estranhos. Voltou à janela. A noite estava silenciosa, parecia que estava prevendo algum acontecimento sinistro. Mas o que poderia ocorrer? Alfredo não sabia. Ficou ali, olhando as luzes dos apartamentos vizinhos. E pensou que as pessoas eram felizes. Todos sabiam como se comportar; ninguém parecia demonstrar qualquer temor diante da vida. Ele é que não aprendera a viver. Por isso, Marília... Por isso, estava só. Desviou o olhar e atirou pela janela um pedaço de papel que tinha na mão. O vento bateu forte e o levou para longe. Alfredo queria ter asas, saber voar e ver as coisas de cima, não da forma como estava habituado. Pensou que poderia se lançar, jogar-se no desconhecido. Ficou indeciso. Faltava entusiasmo para um ato tão arrojado. Teria ele coragem de se jogar dali? Afastou esse pensamento e lembrou-se da pasta que deixara sobre a mesa. Era necessário guardá-la no dia seguinte, pela manhã. E sentiu-se cansado. Fechou a janela e se recostou no sofá. Cerrou os olhos. Adormeceu.


Ainda não eram seis horas quando Alfredo despertou. Sem fazer qualquer ruído, ergueu-se, entrou no banheiro. Era uma quarta-feira – um dia como outro qualquer. Pensou em deixar a barba como estava: um pouco crescida. Mas não teve ânimo, preocupou-se com o que os outros poderiam pensar. Antes de raspar o bigode, até fez menção de deixá-lo. Também não teve força. Jamais conseguira atender a seus desejos. Sempre que queria fazer algo, lembrava-se de que as pessoas poderiam achar estranho, caçoar dele. De cara limpa, meteu-se debaixo do chuveiro. A água morna o acariciava – e sentia seus músculos se retesarem. Era uma massagem... Era como as mãos de Marília, que há muito não o tocavam. Desviou o pensamento, desligou o chuveiro, enxugou-se. Deitada na cama, Marília deixava suas pernas descobertas. Eram bem torneadas e lisas – apenas uns poucos pelos acima do joelho. E isso ainda o excitava? Não sabia. Não procurou forçar o pensamento. Sempre que algo o incomodava, não refletia. Tentando, então, tirar essas bobagens da cabeça, escutou Marília chamando-o. Pensou que ela estivesse dormindo. Enganou-se. Ela o observava havia muito. Sem esboçar qualquer reação, apenas a ouviu dizer que precisavam conversar. Alfredo fez um movimento para sentar-se, mas ela lhe disse que não. Na hora do almoço seria melhor. Saiu. O que Marília queria lhe dizer? Parecia que ele não estava interessado no assunto. Ou melhor, estava, mas fingiu que nada tinha para conversar com ela. De tal forma que, tão logo tomou o café, já nem se lembrava mais do que a sua mulher havia dito. Outros pensamentos tomavam conta de sua mente. O horário... O expediente na repartição... O chefe de setor... Ganhou a rua. Estava uma manhã cinzenta. Na verdade, garoava. Caminhou até o ponto de ônibus. O primeiro que passou estava lotado. Preferiu esperar o próximo. Ainda tinha algum tempo, não estava atrasado. À sua frente, um senhor fumava. E o vento trazia para cima de Alfredo a fumaça. Pensou em reclamar. Mas o que poderia fazer? O lugar era aberto, somente havia uma cobertura que, em dias de chuva forte, jamais protegia as pessoas. E o homem parecia distante, nem mesmo notou a presença de Alfredo. Após terminar o cigarro, jogou-o dentro do bueiro, próximo ao meio-fio. Saiu. Não estava esperando ônibus, queria apenas fumar sem se molhar. O ônibus parou. Alfredo já ia embarcando, quando percebeu que uma senhora descia na direção contrária. Ainda não havia se acostumado com esses ônibus em que a entrada é pela porta da frente. Era até hilário esse comportamento. Habituara-se há muitas coisas em sua vida. Do emprego ao casamento. Mas a ideia de entrar no ônibus pela porta da frente ainda o deixava embaraçado. A verdade é que, ao entrar pela frente, todos os olhares dos passageiros se dirigiam para ele. Simples curiosidades de pessoas comuns, nada mais. Para Alfredo, porém, era demais. Não gostava que o fitassem, ainda mais pessoas desconhecidas. Acomodava-se nos últimos assentos. Ali ficava até desembarcar. E deixava o seu pensamento correr. Nesse dia cinzento, sentou-se ao lado de um vendedor ambulante, que cochilava. O homem trazia uma enorme mochila ao colo. Esta, quando ônibus fazia uma curva, vinha para cima de Alfredo. Mais uma vez, pensou em reclamar. Mais uma vez, todavia, calou-se. Olhando a paisagem, distraiu-se. Seus pensamentos pareciam ter cessado. Nada o incomodava, apenas a mochila do vendedor, fazendo-o voltar à realidade. E aquilo era real? Acordar, tomar banho, ouvir Marília dizer que queria conversar com ele (nem mesmo soube por que isso voltou a povoar a sua mente), embaraçar num ônibus e ser incomodado por uma mochila de um estranho vendedor? Real ou não, era a sua cordata existência. E lembrou-se de quando a sua mãe fazia colchas de retalhos. No início, eram apenas pequenos pedaços de pano, descartados pela fábrica de tecido que havia próximo da casa em que moravam. Sua mãe juntava tudo aquilo e fazia belas colchas. Ele se admirava do trabalho dela. Tivera vontade de lhe perguntar, certa vez, se ela já tinha os formatos e tamanhos das colchas prontos em sua cabeça, ou se elas eram feitas de acordo com o tamanho e formato dos retalhos. Naturalmente, nada lhe falara. E até aquele momento continuava carregando a dúvida. O fato é que, se Alfredo fosse um pouco mais perspicaz, teria feito uma interessante relação dos trapos que a sua mãe costurava com o seu cotidiano. Afinal, a sua vida não fora também construída tal qual uma colcha de retalhos? Ao contrário das colchas de sua mãe, contudo, o paradoxo é que, se juntasse todos os acontecimentos de sua vida, não conseguiria ter um todo. Sua vida era um fragmento que parecia não ter ligação nenhuma entre si. O seu passado pouco parecia ter a ver com o presente. E o futuro... Bem, para Alfredo ele simplesmente não existia. Jamais conseguiu empreender qualquer projeto; jamais pensou além; jamais teve um grande sonho que quisesse lutar por ele. Ao contrário, tudo o que tinha vivido era consequencia de sua não-reação. Nunca tomara uma decisão. Os outros brigavam por seus sonhos, pelo seu espaço. Alfredo, não. Era tão-somente um retalho sem qualquer serventia. Não conseguiria, portanto, unir os trapos e formar um mosaico de sua vida. Era como se, até ali, nunca tivesse existido. E isso o incomodava? Claro que não! O que ele fazia era desviar o pensamento. E seguia... Para onde? Antes que essas ideias pudessem habitar a sua mente, o ônibus parou e ele seguiu o seu caminho rumo ao local de trabalho.


A simples ideia de chegar atrasado à repartição deixava Alfredo transtornado. E não foram poucas as vezes em que precisava correr para chegar no horário correto. Foi assim durante a sua vida profissional. E suspirava aliviado quando batia o ponto minutos antes de dar oito horas. É claro que, depois dele, várias pessoas chegavam atrasadas. Mas esse fato não provocava qualquer indignação em Alfredo. Acreditava que, fazendo a sua parte, poderia encostar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo. A sua parte, é certo, era feita. No entanto, sua vida não era serena. Sempre havia um pensamento incomodando-o, teimando em irromper. Tão logo, porém, se tornava consciente, ele o rechaçava, fazia de tudo para não encará-lo. Temia sofrer ao se deparar com a realidade, com o seu dia-a-dia. Levava a vida. Levava o expediente. Levava... Ou melhor, era conduzido e não se esforçava para reverter a situação. E todo santo dia pilhas e mais pilhas de ofícios, memorandos e processos se acumulavam em sua mesa. Resignado, arquivo tudo. Ao findar o dia, Alfredo tinha a sensação de ter cumprido a sua missão, com zelo e afinco. Procurava não decepcionar o chefe de seção, que, na realidade, pouco se importava com ele. Tivesse sol ou chuva, sua rotina não se alterava. E dobrava a folha de papel. E perfurava-a. e a prendia na pasta AZ. Esta, em ordem alfabética ou numérica, ia direto para a sua prateleira. E Alfredo fechava os olhos, e se orgulhava de tê-la colocado no lugar certo. E o que era certo? Não sabia. Era um cumpridor de ordens. Limitava-se a ler os conteúdos dos ofícios e memorandos. Ofícios recebidos... Ofícios expedidos... Comunicações... Despachos... Dia após dia. Ano após ano. Uma vida, enfim! Mas a vida não era para ele. A vida, tinha certeza disso, era para os outros. Os outros tudo podiam. Alfredo, não. Um mero servidor público não tinha o direito a aspirar a felicidade. Onde estavam as pessoas a quem servia? Jamais lidara com quem quer que seja. Sua tarefa se resumia a arquivar os processos. Sabia que todos tinham um número. E cada número representava uma pessoa. Mas esta era de papel, sem vida. Atendidas ou não, rapidamente ganhavam um número. Aliás, era o primeiro passo para que o processo pudesse circular entre as diversas seções. Quantos processos ele devolveu porque não tinham numeração? Quantos com numerações iguais? Perdera a conta. No entanto, nunca refletira que as pessoas fossem tratadas como simples números. Que os processos estavam relacionados às pessoas. Estas, como numa estante, em ordem alfabética ou numérica – estatísticas sem qualquer emoção. Para ele, as pessoas eram fardos que poderiam ser colocados aqui ou ali, dependendo do gosto de seus superiores. Afinal, todos tinham um papel a desempenhar. Se alguma coisa saísse fora de lugar, tudo estaria perdido. Era necessária, então, a ordem. Todos que burlasse essa lei deveriam ser punidos. Era a lei. E era isso que Alfredo temia: o castigo. Lembrou-se, então, do dia em que chegou em casa, depois da escola, trazendo um caneta que achara. Seu pai não quis saber de conversa. Mandou que a devolvesse no dia seguinte. Mas ele não a roubara. Como localizar o dono? Era impossível. Ficou com a caneta. Uma semana depois, seu pai a encontrou na pasta de Alfredo. Sem deixá-lo apresentar qualquer defesa, seu pai o chamou e deu-lhe uma tremenda surra. Alfredo jamais esquecera esse episódio. Mas sempre que esse passado ocupava a sua mente, desviava o pensamento. Não queria sentir dor. Esta sempre à espreita. Desejava, no fundo, ser tranquilo, ficar em paz. Não conseguia. Acreditava que o seu envolvimento com o trabalho o ajudaria a esquecer da vida lá fora – sobretudo daquela que borbulhava silenciosamente em seu coração. Mas isso era uma quimera. Assim que guardou a última pasta, consultou o relógio. Já passavam dez minutos do meio-dia. Tinha cumprido a sua tarefa matinal. As novas pastas somente chegariam após as catorze horas. Estava com fome. Trancou a porta e dirigiu-se para bater o ponto. Não se lembrava de que Marília queria falar com ele – e nem percebeu que a garoa havia cessado.


Naquela quarta-feira cinzenta, Marília chorou a manhã toda. Estava resolvida a abandonar aquela vida. Não obstante, alguma coisa a deixava sem forças. Não sabia o que era. Pensou em seu filho, Gabriel. Imaginava como ele ficaria sem o pai. Após algum momento pensativa, concluiu: o que a fazia hesitar era o tempo que passara ao lado de Alfredo. Havia se acostumado com aquela pacata rotina. Nada de novo acontecia. Sempre a mesma cadência. Apesar disso, sabia que o seu coração já era de outro – e não era de agora. O outro... Que importância teria tais questionamentos nesse momento? O que ela tinha de fazer era simplesmente arrumar as suas coisas, pegar o seu filho e dizer adeus. Mas não conseguia. Algo a prendia àquele lar; algo a algemava àquele homem. Resolveu não pensar. Abriu o armário e tirou todas as suas roupas, colocou-as na mala. Vacilou. Não conseguiu fechá-la. Chorou... E se lembrou de como era antes de se casar. Olhou-se no espelho, sentiu-se atraente. Sabia disso. O outro costumava lhe dizer o quanto a desejava. Marília tinha um imenso prazer em se sentir mulher novamente. Mas era uma luta íntima. Não conseguia vislumbrar uma saída, embora tivesse plena certeza do que deveria fazer: fechar a mala, pegar o seu filho e dizer... Não concluiu o pensamento. Tudo era tão vago; tudo era tão difícil. Não tinha amigas; não tinha ninguém. Noutros tempos teria sido mais fácil. Mas o tempo... Sabia que o tempo havia passado, que havia perdido muitas oportunidades, que passara a viver à sombra de Alfredo – sempre preocupada com os afazeres domésticos. Sentia-se culpada. Havia jurado ser fiel, havia jurado amor eterno. Mas tudo acabara... O outro a fazia mais feliz. Jogou-se na cama, aos prantos. Queria que alguém (seria Deus?) lhe trouxesse a solução. Tal qual seu pai fazia quando era pequena e não conseguia desenvolver a redação escolar. Ele lhe dizia para ir dormir, que os pensamentos se ajeitariam e, de manhã, teria a redação pronta. Acreditando ou não, o fato é que, ao acordar, a redação estava concluída. Seu pai fizera tudo para ela. Agora ele não estava ali, e se estivesse iria censurá-la: como poderia deixar um homem tão bom? Não se tratava apenas de deixar um homem. Era preciso recuperar o tempo perdido, encontrar novamente a felicidade. E era só tomar uma atitude. Ma como? Temia a reação de Alfredo. No fundo, receava ficar sozinha depois de tomar uma decisão tão drástica. Não poderia fazer como as outras mulheres? Tantas que ela conhecera e que viviam uma vida dupla. Eram esposas exemplares, mas tinham amantes. Não. Ela não agiria da mesma forma. Tomaria coragem, falaria depois do almoço com Alfredo. Ledo engano. Quando ele chegou, Marília já havia desfeito a mala e estava lavando a louça do almoço. Ele se sentou, não a cumprimentou. E almoçou como sempre fizera. Se ele observasse um pouco mais sua mulher, teria visto que ela estava com os olhos inchados, que sua voz estava embargada. Mas disso notou. Marília, então, respirou fundo e... Não conseguiu. Fora traída por seus pensamentos. Pensou uma coisa, mas sua boca proferiu outras palavras. E acabou pedindo para Alfredo esquecer o que ela tinha dito pela manhã. Limpando a boca com o guardanapo, ele dissimulou. Fingiu não entender o que ela estava dizendo. Marília teve vontade de pular em cima daquele homem. Mais uma vez, porém, a pretensão não correspondeu à ação. Estava paralisada. Seria o seu fim? Não sabia. Alfredo almoçou, voltou para a repartição. Marília ficou sozinha. Entrou no quarto. Arrumou a mala novamente. Dessa vez, seu filho viu tudo. Ela o abraçou e disse-lhe que eles iriam embora. Mas a sua força pareceu diminuir quando ele perguntou se o papai também iria. Ela murmurou algumas palavras que Gabriel não entendeu. Afastou-se dele. Como se estivesse em transe, escreveu um bilhete para Alfredo. Deixou-o em cima da cama. Agora, não havia tempo a perder. Precisava sair dali o mais rápido possível. Não era momento para reflexões; a ocasião pedia ações. E foi o que fez. Pegou a mala, segurou seu filho pela mão e bateu a porta. Sabia que se hesitasse ou se olhasse para trás tudo estaria perdido. Olhou para o céu. A garoa havia voltado. E as gotas se misturavam às suas lágrimas. Mas não sabia por que chorava. Na verdade, não atinava no que estava fazendo. Para onde ir? Precisava de um lugar. Não havia pensado nisso. Não podia deixar o seu filho sem um lugar para dormir. Pensou no outro. É claro! Ele ficaria contente em saber que ela havia deixado Alfredo. Decidida, dirigiu-se à casa de seu amante. Ao vê-la com a mala e seu filho, o homem logo entendeu o que estava acontecendo. Assustado, nada disse – embora seu olhar e seus gestos falassem mais que palavras. Passado o susto, porém, tentou dissuadi-la de seu intento. Disse-lhe que ela não precisava abandonar o marido. Poderiam se encontrar com mais frequência; era, enfim, um erro que ela estava cometendo. Ao notar que havia sido enganada, Marília empalideceu – quase desmaiou. Naquele momento, suas lágrimas secaram – e passaria muitos anos sem chorar. Olhou o seu filho e, como um milagre, encontrou forças que nem imaginava possuir. Queria ser feliz, ser mulher, ser respeitada. Estava sozinha, mas não iria esmorecer. Não mais voltaria para casa. Daria um jeito. Poderia arrumar um emprego; não passaria fome. Abriu a carteira. Viu que suas economias dariam para alguns dias. Dirigiu-se a um hotel. Sim, era isso. Ficaria hospedada até resolver a situação com Alfredo. Era a sua decisão. Estava disposta a defender a sua vida e lutar por seus sonhos. Não obstante, o que Marília entendia de luta e defesa de desejos? Nada. Seu pai nunca lhe falara a respeito; na escola, a professora jamais mencionara que é preciso proteger a vida; também nunca soube que a liberdade, após ser conquistada precisa ser preservada. Não é tarefa fácil. A maioria das pessoas cansa, desiste de trilhar esse árduo caminho. Por algum tempo, é verdade, ela conseguiu se defender. Mas não era uma guerreira. De tal forma que, quando se casou novamente, não demorou muito para voltar à situação anterior: submissa e infeliz. Nos momentos em que mais se angustiava, lembrava-se de Alfredo. E, quando isso acontecia, percebia que ele não era culpado de nada. Era ela mesma quem não sabia defender os seus interesses mais secretos. E se fechou para a vida, acreditando que o único amor verdadeiro era o que sentia por seu filho.


Ao chegar em casa, Alfredo estranhou o silêncio. Mas não deu importância. Seguiu a sua rotina. Tirou o paletó e se dirigiu ao quarto. Demorou um tempo até perceber o bilhete sobre a cama. Reconheceu a letra de Marília. E sentiu uma sensação estranha. Mas não saberia defini-la. À medida que ia lendo se recostava na parede, até cair de joelhos. O que estava escrito era muito doloroso e desprezível. Pensou que fosse uma brincadeira. Mas quem iria fazer isso? Quis rasgar o bilhete. Desistiu. Abriu o armário. Apenas as suas roupas estavam guardadas. Foi ao quarto do menino. Chamou pelo filho. Gabriel não respondeu. Não havia ninguém. Pensou em gritar. Faltaram-lhe forças. Estava escrito no bilhete que Marília havia ido embora por causa de outro. Desejou saber quem era ele. Mas que importância teria isso agora? E esse pensamento logo desapareceu de sua mente. Abriu a porta do apartamento. Atravessou o corredor. Parou em frente ao elevador. Pensou em sair pela rua à procura de Marília. Para onde teria ido ela? E o seu filho? Não se esforçou muito, porém. Não entendia o que estava acontecendo. Por que Marília o enganou? Por que não havia sido sincera com ele? Eram perguntas que ficariam para sempre sem respostas. Ficou com vergonha. Um homem abandonado pela mulher! E pensou na repartição. Todos iriam... Nada disso importava naquele momento. Não conseguia manter uma sequência lógica de raciocínio. Entrou em casa. Pegou o telefone. Ligar para quem? Não havia ninguém… Estava sozinho. Precisava tomar uma atitude. Mas como? Nunca tomara atitude alguma. Não sabia o que fazer. Sentou-se. Releu o bilhete. Era verdade. Marília havia ido embora. Mas ele não queria saber da verdade. Ela era intolerável. Era pesada demais para ser encarada. Nunca aceitou a realidade. Precisava fugir. Estava só. E se ela se arrependesse e voltasse? Iria aceitá-la de volta? O que os outros iriam pensar dele? Que era um fraco, um covarde, um tolo. Em nenhum momento pensou no filho. Estava preocupado demais com as aparências para se lembrar de outra pessoa. Tentou mentir para si mesmo. Sim, era tudo uma invenção de sua cabeça. Não podia ser verdade. E, amanhã, como iria trabalhar? Iria dizer... Os pensamentos se atrapalhavam. Estava perturbado. Fez algumas indagações que logo esmoreceram pelo cansaço de seu dia-a-dia. Estava exausto, não conseguia reagir. Havia um fato: a mulher o abandonara, levara seu filho. Não estava preparado. Como iria se recuperar? A verdade... Ela dói; ela é insuportável! De repente, Alfredo abriu os olhos. E viu que ainda estava sozinho. Marília não voltara; Gabriel também não. Mas não era mais aquela quarta-feira cinzenta. Eram cinco horas da manhã, o dia estava nascendo. Havia dormido no sofá. Fazia tanto tempo. Mas o tempo... Que importava? Para o coração não havia tempo, não havia distância. Para Alfredo, o tempo não existia. Ou melhor, o tempo havia parado no dia em que lera aquele bilhete. Foi ontem... Era quarta-feira... Havia uma garoa... Ela foi embora por causa de outro e ele nunca mais se recuperou. Sim, ela disse no bilhete, tinha um amante. Marília! Tentou gritar. Mas os vizinhos... Ainda era cedo. Confundiu-se. Pensou que ela ainda voltaria. Sua cabeça rodava. Era a alvorada. Mas parecia que estava entardecendo. Delirando, ergueu-se. Foi à janela. Teve uma sensação esquisita. Olhou para baixo. Marília não vinha. Havia sido abandonado. O serviço. Daqui a pouco precisaria ir à repartição; precisava guardar a pasta... A pasta em cima da mesa, deixara para guardá-la amanhã. Mas já era o amanhã. Um novo dia estava nascendo. Não obstante, ela não mais queria sofrer, não mais queria conviver com o fantasma de Marília. Estava cansado de tudo. Estava cansado de se sentir só. Estava cansado de temer chegar atrasado. Estava cansado dos vizinhos. Estava cansado dos processos. O cansaço... A solidão... As horas que não passavam... A espera por dias melhores... Tudo fora uma grande decepção. Os homens haviam se tornado intoleráveis. Era somente mentira, dissimulação. Ninguém era sincero – embora todos dissessem ser verdadeiros. Alfredo também não era sincero. E a sua mentira, talvez, fosse a mais grave: mentia para si mesmo. Os outros... Não havia outros. Eram todos iguais. Eram feitos do mesmo barro. O mesmo sopro divino havia entrado em suas narinas. Em algum momento houve uma queda. E todos se perderam. Era necessário seguir o caminho, mesmo que a duras penas, mesmo que fosse com infelicidade. Por isso, não eram sinceros. Mentiam descaradamente. Era uma questão de sobrevivência. E os vencedores eram aqueles que melhor sabiam dissimular – e todos passavam logo a venerá-los. Todos tinham telhados de vidro... Fatigado, parou de pensar. Estava suando. Num momento de lucidez, percebeu que a dor que estava sentindo era a mesma que sentira no dia anterior, quando tentara colocar a pasta na estante e não conseguira. Jamais havia acontecido algo parecido. Não estava bem. Sentou-se. Consultou o relógio. Não conseguiu enxergar as horas. Tudo se embaralhava diante dele. Sua cabeça girava. Marília... Abandonado... Jamais conseguira dizer novamente essa palavra, que o matara lentamente durante esses anos. Voltou à janela. Os primeiros raios de sol pediam licença às nuvens para passar. O sol o deixava mais confuso ainda. Perdera a vida. Perdera a noção do tempo. Perdera a noção do amor. Um bilhete na cama. E Marília fora embora. Estava sozinho. Uma leve brisa balançava seus cabelos. Mas ele não sentia a brisa. Não sentia mais nada. Na verdade, havia muito tempo que estava anestesiado. Sentia o sangue pulsar em suas veias? Possivelmente não. Cerrou os punhos. Quis dar um soco. Não conseguiu. Caiu. As lágrimas confundiam-se com o seu suor. Aliás, havia uma mistura de realidade e delírio. Este era mais forte. Vivera uma ilusão. Não fora feliz. Teve medo. Estava ficando sufocado. Marília ainda iria voltar. Para quê? Tudo estava acabado. Não sabia mais quem era. Olhou-se no espelho. Não se reconheceu. Viu o rosto de Marília sorrindo para ele. Virou-se. Não havia ninguém. E a pasta? Quem colocaria a pasta no lugar? Não queria saber. Mais uma vez seu peito ficou ofegante. Estava suando. Tremia. Queria gritar. Não podia, ainda era cedo. O máximo que conseguiu foi sussurrar: Ma-rí-li-a. Era a mulher que ele culpara a vida toda por seus enganos e erros. Por sua infelicidade, enfim. Nesse instante, percebeu uma luz, que não o ofuscava. E ficou face a face com a sua realidade. Esta, ao contrário do que sempre pensou, não lhe apertava o coração. O que oprimia seu coração era justamente a falsidade. Era agir ao contrário do que pensava. Era o esforço que tinha de fazer para agradar o chefe, que nunca olhou em seus olhos. O que mais doía era não ter tido momentos de prazer. Essa era a dor. Não a verdade. Esta era a luz que irradiava em seu apartamento. Descobriu, então, que ele era o único culpado por estar naquela situação. Nunca soube se defender. Nunca disse um não. E a vida fora suplantada pela miséria humana. Ainda tinha uma chance. Estava, porém, sem forças. E se fizeram as trevas novamente. Era necessário abolir aquela dor. Queria a liberdade. Não mais queria se sentir oprimido. Voltou à janela. Lá embaixo, Marília o chamava. Não trazia o seu filho. Onde estaria Gabriel? Sentiu o mundo girar. Havia um desperdício de tintas no céu. Mas isso não chamou a atenção de Alfredo. Marília estava lá embaixo. Ela havia voltado. Tudo não passara de um sonho. Ele precisava tomar a iniciativa dessa vez. Sim, ele seria corajoso. Iria ao encontro dela. Ela o chamava. Tomaria pela primeira vez uma atitude na vida. Estava mais leve. Subiu no parapeito da janela. Procurou se equilibrar. E gostou da sensação de liberdade que isso lhe dava. A altura... O risco... A vida... A morte... Queria morrer para essa vida; renasceria. Seria outro. Olhou para baixo. Marília não mais estava lá. Havia desaparecido mais uma vez. Não hesitou. Largou a mão do batente em que se segurava. Deu um salto. Enquanto caía, sentia-se liberto – nenhuma dor jamais o incomodaria. E Marília? Não mais importava. Havia dado um passo sozinho, e isso bastava. Um mergulho no abismo... O nada... O nirvana... E uma nuvem cobriu os seus olhos. A cidade ainda dormia quando um jornaleiro encontrou o corpo de Alfredo no chão. Em seu enterro, poucas pessoas compareceram. O chefe de seção não foi. Disse que tinha uma reunião muito importante naquele dia. Dois dias depois, um estagiário erguia a pasta que Alfredo deixara sobre a mesa e a colocava na estante. Não estava no lugar certo, é verdade. Mas a ordem das coisas não tem nenhuma importância quando se descobre que a vida não obedece a leis rígidas e definitivas.

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