sábado, 22 de dezembro de 2012

Hoje encontrei o Natal


(Escrito em 2008, logo após a Tragédia das Águas que assolou Santa Catarina)

Hoje encontrei o Natal. Meu cachorro me acordou antes da hora costumeira, seis e pouco no relógio, e saí com ele para dar a volta matinal. No portão aqui do nosso abrigo de flagelados passava um homem empurrando uma bicicleta e levando uma cachorrinha presa por uma corrente.

No primeiro momento, só vi a cachorrinha, amizade certa para o meu cachorro, e os dois pularam um no outro e se lamberam, e o dia começava prometendo ser bom. O homem perguntou:

- A senhora sabe qual é o caminho que se deve tomar para se chegar à BR 470?

Eu disse que ele estava certo, que era seguir sempre em frente aquela rua, que ele acabaria chegando à BR 470.

- E lá vai dar em Guaramirim, não é mesmo?

Não, não era mesmo. Para Guaramirim havia que se tomar a rodovia Guilherme Jensen, e lhe expliquei como fazer, onde entrar.

- Mas não dá para ir pela BR 470?

Para Guaramirim não dava. Prestei mais atenção no homem, um dos tantos andarilhos que circulam por nossas estradas nestes tempos estragados pelo neoliberalismo, apesar de agora já estar mais que comprovado, lá nos centros de poder, que o neoliberalismo não passava de uma falácia das piores, simples estrangulador de pobres para encher cofres já abarrotados de ricos.

O homem da manhã estava incrivelmente sujo e coberto de feridas, com dois abcessos abertos nas bochechas. Havia muita crosta e muito pus em muitos lugares, e cobrindo tudo, a grande crosta de pó que é vestida, atualmente, quando a gente se locomove pelas ruas ou estradas da minha região, depois que secaram os mares de lama oriundos do derretimentos dos morros. Um executivo que saísse a andar por aí de bicicleta acabaria com a mesma crosta de pó – só não teria as feridas e os abcessos. Fiquei pensando: seria uma doença, ou seria falta de determinadas vitaminas? Talvez fossem as duas coisas; talvez fossem algumas doenças; quem garante que os abcessos nas bochechas não proviessem de terríveis dores de dentes que aquele homem sorridente com sua cachorrinha tivesse tido só e desamparado, nos escondidos de passar a noite que ele devia conhecer? Aí ele me disse:

- Mais para frente há acostamento? É que meu braço está quebrado em dois lugares, e está difícil tocar a bicicleta. Com acostamento fica mais fácil...

Só então reparei no gesso do braço esquerdo, tão coberto de pó e sujeira que a gente nem prestava atenção.

Sim, haveria acostamento mais para a frente, e fomos conversando, e os cachorros foram correndo, e eu lhe mostrava as muitas feridas nos morros, de onde a minha cidade sangrara como nunca havia sangrado antes, e as casas que já não existiam, e outras casas que haviam ficado enterradas na lama até a altura da metade das janelas...

- Quantos quilômetros o senhor faz por dia, com essa bicicleta?

- Dá para fazer uns 80...

- E a cachorrinha anda isso tudo?

- Não, ela vai aqui no engradado...

Havia um engradado de plástico amarrado no bagageiro da bicicleta, onde o homem carregava seus bens. Não olhei muito, só reparei que havia uma garrafa de dois litros quase cheia de água.

A cachorrinha tinha se animado demais, andava fazendo umas incursões para o meio da rua, e ele temeu por ela. Puxou-a pela correntinha, colocou-a no engradado, onde ela ficou, toda faceira e feliz, sem nem se importar com a interrupção das brincadeiras que fazia com meu cachorro. Ela amava profundamente aquele homem, morreria por ele. E ele me contou:

- Era uma filhotinha jogada fora. Encontrei-a perdida numa rua de Navegantes. Está com quatro meses.

Conversamos rua afora, e fui descobrindo que aquele homem entendia de todas as estradas e cidades do sul do Brasil.

- Em Barra Velha – contou-me – há uma mulher que tem doze cachorros. Todos grandes. Ela os acha na rua e leva para casa. É uma mulher de coração muito bom. Gasta mil reais por mês, só de ração.

Eu me admirava.

- Lá em Itajaí a enchente foi terrível. Eu vi como as casas de madeira ficaram imprestáveis. Mas a senhora tem certeza de que para ir a Guaramirim não tem que pegar a BR 470?

Eu tinha. Perguntei-lhe o nome. Era José Aparecido e já não lembro o sobrenome, que ele tinha um singelo orgulho de ostentar, como quem tem um último bem que não pode ser roubado por nenhum neoliberal.

- Em Guaramirim eu tenho amigos! – ele me contou, como um segredo de enorme valor, e me fez lembrar de Saint-Exupéry. Eu estava mesmo bem curiosa para saber o que ele ia fazer numa cidade pequenininha. – Já trabalhei seis meses em Guaramirim catando papel, tenho amigos lá. Os meus amigos de lá fazem festa de Natal! No ano passado teve até chope!

Pronto, estava explicado! Fiquei com um bocado de vergonha desta dor que há dentro de mim, que está me impedindo até de ouvir música de Natal, quando ela aparece sem querer.

Ele contou-me outras coisas, sobre os três carrinhos de catador que já tivera; sobre as diferenças de preços de latinhas vazias que existia em Blumenau e em Curitiba – agora só tinha a bicicleta e a cachorrinha, que ia que ia montada na garrafa de água do engradado.

- Mas a senhora tem certeza de que para Guaramirim não tem que passar pela BR 470?

Garanti-lhe de novo, dei mais indicações do caminho. Perguntei:

- Como é a festa de Natal em Guaramirim? Tem galinha assada?

- Tem de tudo, dona. Tem carne, tem maionésia, tem chope! Tem até as mulheres que trabalham lá! – ele não disse da fraternidade que deveria ter, do consolo dos braços amigos, que sabe do reencontro com alguma antiga namorada, mas tudo estava implícito na intensidade da emoção dele.

Eu deveria voltar, já fora longe demais pela empoeirada Rua das Missões, onde íamos caminhando, e via meu cachorro de língua de fora. Disse-lhe:

- Tenho que ir. Meu cachorro já está com sede.

Então, a galanteza maior de todas que ele poderia ter feito:

- Mas tem água aqui na garrafa, dona. Pode dar para o cachorro.

Sei bastante da vida dos andarilhos deste mundo para saber que não conseguem água com facilidade, que muitas vezes são apedrejados quando se aproximam de alguma casa para pedir água, pois as famílias pensam que eles vêm para lhes roubar as crianças. Aquele homem de abcessos nas bochechas e esmagado pelo poder do Capital dividia sua última riqueza sem nem pensar. Então me senti pequena e mesquinha diante da grandeza dele, e fiquei com vontade de chorar. Antes que o fizesse, despedi-me, e ele me apertou a mão sem nenhum constrangimento pelas feridas supuradas, com a galhardia de um rei.

- Boa viagem para o senhor! Não esqueça de virar à direita onde lhe ensinei!

- Feliz Natal, dona! É uma pena que a conversa já está acabando tão cedo! É muito bom viajar quando a gente pode ir conversando!

Em Guaramirim, vai haver um grande Natal! É uma notícia muito boa. Será que aquele homem não era um dos reis magos e não estava encardido assim por ter atravessado os desertos bíblicos?

Feliz Natal, José Aparecido! Aqui, choro de emoção por ter encontrado assim o Natal!

Blumenau, 14 de Dezembro de 2008.

Urda Alice Klueger

Escritora.

 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Cartão da Urda


Farejando Auroras


Por Elaine Tavares - jornalista

E então já está por aí o natal. É o que me diz a televisão em promoções a granel. Já, para mim, essa não é uma data de presentes e compras compulsivas. É o aniversário de um dos meus deusinhos: Yeshua, Jesus. Digo deusinho porque não arrogo a ele poderes sobrenaturais. O vejo assim, homem, cheio de dúvidas sobre seu destino, a clamar pelo pai na cruz. O vejo menino, a questionar as leis juntos aos velhos encarquilhados em certezas ultrapassadas e aprisionantes. O vejo jovem, a arrancar os outros de seu conforto, propondo a ilegalidade e a rebeldia. Gosto demais desse Jesus arrogante, a expulsar vendilhões do templo, denunciando-os e apontando-lhes o dedo. Encanto-me com o Jesus que se coloca diante do poder e, arriscando morrer, levanta a cara e diz ao ser acusado de ser deus: “assim o dissestes”. E se entrega ao juízo do povo, mesmo sabendo que esse mesmo povo que ele tanto amou, o vai abandonar, preferindo Barrabás. É esse guri que eu espero nas noites de natal. Aguardo, cheia de esperança, que ele renasça nos jovens que vejo andar por aí a fazer a luta, a questionar as leis, a apontar os vendilhões, a demolir as certezas de um sistema que mata e exclui.

Sei também que a data do natal está conectada a tempos ancestrais, celebrados desde as eras imemoriais por todas as culturas da terra. O solstício de verão, o começo de uma nova estação cheia de beleza e luz. Sei que era nesse dezembro que as gentes de outros tempos dançavam sob o fogo, cantavam e esperavam que a vida revivesse e a roda do mundo seguisse seu curso no rumo do bem-virá. Por isso, gosto também de me perder nessa esperança do povo andino, o Qhapac Rayme, e oferecer alimento a mãe-terra, Pachamama, confiando em suas bênçãos e na vida que brota. É alimento, e faz com que eu veja que as coisas sempre nascem, do nada, da dor, da desesperança, da desilusão. Há sempre um reviver. Isso é o natal, essa data mágica de todas as fés.

Então, quando chega esses dias de natal, gosto de celebrar. Um pouco como as culturas antigas, um pouco como as da minha gente ancestral, mas, nascida e criada na herança cristã, também me apetece compartilhar com meu deusinho o dia do seu nascimento. Porque Jesus, como tantas outras divindades de tantas outras religiões, nasce no dezembro, perto do solstício, essa noite curta que promete vida, e nada mais. Tão simples, tão densa. E, nesse 2012, ainda mergulhada nas interpretações das lendas maias, de fim de um longo tempo de escuridão. Porque é disso que falam os maias. Fim de uma era, começo de belezas... Talvez, como dizem os andinos, o começo de um novo pachakuti, uma virada de pernas para o ar de tudo que há. Outra lógica, outra forma de viver no mundo. Quem nos impede de crer? E de lutar por isso?

Assim, este ano, nessas semanas que antecedem o natal, o fim da era maia, o novo pachakuti, vou adentrar pelas noites, farejando a vida. Que ela venha, pelas mãos dos velhos amigos, e na caminhada dos novos, que chegam agora e já se comprometem com tanta força. Espero-te meu deusinho, assim como espero todas as divinas criaturas capazes de brotar fogueiras em mim e em todos os que amo! Porque acredito que não há escolhidos, eleitos, nem deuses que são maiores que outros. Toda a crença do homem, inventada para sustentar seus terrores, remete a uma única e abençoada certeza: de que somos uma raça frágil, que necessitamos uns dos outros, e que estamos procurando, juntos, a terra sem males.

Então, desde o 21 de dezembro até o natal, que se dance pelas ruas, como dizia Nietzsche, e que seja tudo pelo bem das gentes. Todas as gentes, com todos os deuses e deusas... E que brote o amor, esse sentimento revolucionário, e que se mude a vida...

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A Força

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite - Clarice Lispector. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Nação Poesia


Para além da (ótima) poesia, um reencontro com o que há de melhor no ser humano. Eis o que apreendemos ao ler "Nação Poesia", de Luiz C. Amorim.

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Natal do Menino


Véspera de Natal. O menino ansioso. Sonha o presente. Olha pela janela. Céu sem estrela. O calor do verão. O silêncio da noite. Papai Noel voa? Pensa que sim. E vasculha o céu. Procura. De que lado ele vem? Não sabe do Sul. Não sabe do Norte. Sabe esperar. E aguardar cansa. O menino esfrega os olhos com as mãos. Difícil ficar acordado. A cabeça balança. Ele se esforça. Em vão. É vencido pelo sono. E o menino sonha... Segue num trenó vermelho. Grande, muito grande. Seis ou oito renas – não sabe contar. Há também um velhinho. Barbas brancas, muito brancas. Papai Noel! Vontade de gritar. O trenó segue rápido. O saco cheio de presentes. Vai dar tempo de entregar tudo? O menino olha a lista. Letras, muitas letras. Seu nome está ali? Ele não sabe ler. O trenó para. Papai Noel entra numa casa. Não demora a regressar. A viagem prossegue. Vontade de perguntar tanta coisa! Papai Noel responde? O menino fica com medo. Não quer atrapalhar. Outra casa... Mais outra... E o saco vai ficando vazio. Quase fim de noite. Resta apenas um presente. Será o meu? – o menino pergunta. Esperou o ano todo. O velhinho desce do trenó. E demora a voltar. Na verdade, não volta. O menino preocupado. O que aconteceu? As renas se assustam. O desequilíbrio. O menino cai. O vazio... A janela bate com o vento. O menino se acorda. Cadê o presente? Olha em volta. Procura. Casa pobre, muito pobre. Pequena. Quase sem tinta. Uma cama. Cinco pessoas dormem. Papai Noel existe. Não foi assim que ele viu na TV? O coraçãozinho do menino bate forte, muito forte – quase sai do peito. Volta à janela. Uma luz no céu. Então, não é sonho! É o trenó que brilha. O menino sorri. Quer chamar a mãe. Quer chamar os irmãozinhos. Todos dormem. Ele olha de novo. Céu nublado. Escuro. Breu. E o menino fecha a janela. Afasta o bracinho do irmão. Deita-se na cama. Fecha os olhos. Dorme. E não sonha mais.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Divulgação

O romance "Desenho a Giz" ganhou destaque na Agenda Cultural de São José.

Para conhecer o trabalho do pessoal da Agenda, segue o link:

http://www.ctpmsj.sc.gov.br/